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Um jantar à luz das velas




Jantar num monte alentejano decorado com memorabilia e pormenores de gosto desconcertante – posto que da aristocracia não se pode alegar mau gosto nem adjectivação inapropriada - antigo coto de caça de uma família com pergaminhos,  do norte, que agora aluga o espaço em package com direito a histórias de passados gloriosos em voucher de fim de semana. Manuseando talheres antigos e outros que para lá caminham, veio a tema, entre um lombo de porco e uma “crumble” de maçã, a excelência da empregada ucraniana.

 Não fora o facto merecedor da mais sonora admiração, o de ela falar bom português com acento alentejano, ainda conseguiu o feito de levar os dois filhos ao colo até a licenciatura num estrangeiro que não este.

A “Mãe” – não a da ucraniana mas a da anfitriã - acometeu-se de uma arrelia crónica que a levou à morte,  por ter de partilhar a mesa de família com autóctones de Massamá e outras proveniências. Foi uma enxaqueca que a consumiu, a da partilha e por ter de alojar os criados no sótão, que nesses tempos de aperto, em que se tomou a decisão do negócio, estava em péssimas condições devido à momentânea incapacidade familiar de suprir os custos de um telhado novo que abrigasse os comensais sem riscos de contratempos nefastos. 

Também não lhe acentou bem o facto de alguns comensais desconhecerem a utilização prática da quantidade alucinante de talheres que bordeavam os pratos antigos lascados com que os serviam, mas isso não contribuiu em nada para o seu apagão.

A velha senhora acabou por fenecer, os tempos mudaram e a família lá vai fingindo que aceita o convívio com os bárbaros, que o dinheiro é igual vindo de onde vier e faz falta para manter o monte.

Contra todas as intempéries, a ucraniana  desempenhou o seu oficio de emigrante exemplar, nunca se queixou nem meteu baixa, e medrou nas poupanças de moedas e notas de baixo calibre para investir no futuro, aquela ilusão de um dia se poder usufruir das mordomias que não se teve, sem preocupações de carteira.

A dona da casa, com um estilo blasé típico, que assuntos destes merecem, utilizou-se da serviçal para exemplificar na companhia do vinho simpático que se bebeu, a excelsa lição que os portugueses constantemente dão ao mundo sem cobrarem nada por isso: apesar da adversidade e do incómodo de terem de sair do sitio em que gostariam de continuar a estar - se os deixassem - abalando para um desconhecido assustador, a sua humildade, disciplina e sentido de honra, dá-lhes a fibra dos melhores trabalhadores do mundo, reconhecidos e acarinhados nos locais de acolhimento.

São únicos, porque nenhum outro emigrante se lhes iguala. Trabalham de sol a sol , não entendem nada das línguas que se falam, mas isso não lhes atrapalha a labuta.

O genuíno lusitano (ficou-se aqui na dúvida se era do equino que se falava), é o ser humano melhor adaptado para sobreviver na mudez, às agruras e injustiças do mundo.

A senhora – como todas as senhoras de famílias conservadoras que nunca  conseguiram fazer uma folga dos seus espartilhos– está na sua razão: jamais uma ucraniana, presumida que seja na sua eficiência, se poderá comparar a este espírito único, diferenciador, motivo de exemplo e constante referência universal, como é o emigrante português, disputado por tudo e todos.

Os comensais suburbanos e ateus de finura, após recolherem aos seus aposentos, no limbo pós prandial, entraram numa espiral de dúvida e confusão: será que os ucranianos da Ucrânia, não pensam o mesmo dos seus filhos emigrantes? Os seus verdadeiros heróis, abnegados, humildes, trabalhadores ? Será que os nossos emigrantes não são o melhor de nós, precisamente por isso mesmo? Porque quando se é deportado à força, baixa a raiva de sobreviver com dignidade , e vem à superfície o melhor de cada um , quando o melhor de cada português vivendo no seu país é sempre o pior aos olhos de quem se esquece das prescrições de prazos para governar.

Se puserem algumas telhas novas, a ucraniana ainda se vai aguentar nesse sotão, caso contrário pode sempre arriscar a Guiné Equatorial já que sabendo falar bom português não terá problemas de aclimatação.


Teria a sua piada se um dia vier a comprar esse monte alentejano.

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