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Matinas



Uma cela. As paredes já foram brancas, há quanto tempo? Agora sem cor que se lhe conheça nome na paleta da memória das cores. O chão também sujo desse não branco, lajedos quadrados, irregulares, muito frios.

Pouco mobiliário, se é mobiliário a união de tábuas rudes de madeira, sim isso mesmo, unidas com o objectivo simples de servirem um propósito elementar. Um catre de tábua corrida, um colchão fino como  carpaccio de feno fresco, uma manta descolorida áspera que não aquece.  Cadeira, mesa e nesta um coto de vela; pequeno oratório com um crucifixo na parede; tapete velhíssimo, genuflexório; uma tina de metal, redonda no centro da divisão, receptáculo das brasas, sinais de vida neste lugar.

A cela abre-se a um pequeno jardim privado, ultrapassada uma porta que deixa passar  ventos frescos .

Cinco passos curtos em qualquer direção a partir de uma oliveira, eixo desta representação do universo. Muros altos delimitam o espaço para lá das alturas de um homem, viram-se os olhos do avesso ao espaço azul, passeios de deus. Não é inusual distinguir-se o rasto branco de um avião.

O monge cozinheiro, numa casa sem relógios, deposita refeições frugais à hora certa num espaço-buraco rasgado na parede de cada casulo: a tijela acolhe uma sopa rica de produtos da horta, o pedaço de pão denso é bom - vagoroso no tragar- duas peças de fruta, uma jarra de água pura.

No dia do Senhor comungam juntos a refeição . Não se olham, não se falam.

 É bonito o som dos cânticos gregorianos.

Recolhem para  preparação das matinas - prece e louvores - vígilia que se imiscui na escuridão de uma noite que toma conta dos volumes da igreja. Não fosse a presença de velas titubeantes que alumiam os livros de cânticos, a escuridão era absurda.

O jornalista e o aprendiz vão delibar a experiência de uma inclusão monástica, num fim de semana.

Quarenta e oito horas, para dar notícia ao mundo do que se passa nesse universo onde oito almas intemporais, têm a funcionar há séculos um posto rádio para comunicarem com Deus.

Levam papel, caneta e máquina de retratos para captar os espectros destes homens santos, sombras projectadas em ecrán gigante nas paredes do claustro, sombras que peregrinam em voltas e voltas místicas.

O sino que anuncia os raros visitantes, ecoa de árvore em árvore até o ouvido perder o seu rasto. Aparece um homem de hábito branco e sorriso. Convida-os a entrar.

Mãos amáveis recebem as dádivas e abençoam.

O Irmão Juan, filho de aristocracia madrilena, viveu a mundanidade até um  despertar inquieto na procura de solução  para perguntas incómodas. Tinha vinte e poucos mais. 

Procurou na Universidade, enfadou-se nos auditórios desconfortáveis e nos monólogos de cátedra. Nas prateleiras das bibliotecas perdeu-se em calhamaços catalogados. Se chegou carregado de apontamentos , atafulhou-se ainda mais de papéis e duvida.

Esse engarrafamento, trouxe pensamentos inférteis, e tendo podido descambar em desgraça, deu em chamamento contemplativo.

Até chegar a esse cruzamento da vida, o mais próximo que tinha da possibilidade de existência de um ser ufano traduzia-se na lembrança das peinetas finamente trabalhadas e da mantilha preta que a mãe punha aos Domingos, quando acompanhava o pai, franquista de costados, a cumprirem e dar-se de vistas - suave obrigação de bons cristãos - na catedral Real de nossa senhora de Almudena, por sinal uma casa que arrebata fôlegos.

Dada a esterilidade que sentiu – inconformismo seu - nos meios académicos, adveio-lhe uma febrícula teimosa que o possuiu. Sintomas em catadupa: arrependimento, ideias perversas sobre o pecado, secou-se-lhe o prazer da cuba libre, dos sons latinos, dos corpos húmidos a tresandar salero .

Como a febre persistia mesmo com a influência do Bispo Auxiliar que  chega mais cedo ao Alto que a voz esganiçada de um simples cura, baixou na família uma modorra frustrante que antecipava a muito possível impossibilidade do primogénito não  singrar numa carreira na banca.

E um dia, sem aviso prévio, Juan apagou-se do mundo e deu entrada na Ordem dos Cartuxos.

Agora é o Abade e mantém um jovialidade desconcertante apesar da idade avançada que não aparenta. Como se obrigou a votos de mudez, quando pode, fala com gosto e disfruta desse momento contando com pormenor a sua história passada . Também explica com minúcia as rotinas que os visitantes devem cumprir na visita.

Acompanha os convidados num pequeno passeio pelo enorme edifício, até recolher à cela. Deixa-os entregues a questões metafísicas.

Sem que se dê conta, o manto diáfano de uma noite cristalina  pousa lentamente com vagares nos campos lavrados, na folhagem queda, nos seres vivos que se preparam para dormir.

Aqui e ali, quase assustando, um som indefinido acontece. 

O tempo passa.

No convento o sino chama à igreja e os monges  saiem de cabeça coberta  percorrendo o claustro, sem o perturbar.

A igreja está parcamente iluminada, já se disse. Os monjes são recebidos pelo abade que desenha com o corpo uma cruz no chão. 

Humildade e entrega.

Ocupam os seus lugares. Rezam e cantam. Sons pristinos que se elevam em volutas no ar.

O repórter e o ajudante recolhem essas imagens no seu íntimo, esmagados pela presença invisível do divino.


Um dia vão escrever sobre esse encontro, quando encontrarem as palavras certas para descrever Deus. 

O mais provável é não se conseguir.


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