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A mostrar mensagens de dezembro, 2014

HISTÓRIA DE NATAL

Estava todo farruscas. O cão assustou-se claro – os pelos ficaram híspidos – e ladroou sem pedir autorização aos pulmões. - Sou eu farrusco – disse o ti Manel. O bicho reconheceu a voz do dono e acalmou o pranto. Quanto aos preparos em que este se apresentava não chegaria lá sem explicações mais convincentes. E ele era um canídeo inteligente. O estouvado do pastor – dera-lhe para ali – cobria-se com uma saca de serapilheira a fazer de casaca, cravejada a castanhas e nozes, com apontamentos de folhas vermelhas. Enfiada na cabeça, uma carapuça da mesma cor. Cada vez que ele meneava a cabeça, com um guizo a fazer de berloque no carapuço - a dar e dar - a barba, já de si branca, soltava uma espécie de poeira nívea. O sacana (cogitações do cão) tinha a cara e as mãos chamuscadas de preto. Preto? - Farrusco, estou de Pai Natal. O cão, que era o único indivíduo naquela casa que não se chegava ao bagaço, compreendeu o personagem que o dono estava a encarnar. Agora em preto, nu

O Paquistão e as comemorações do Natal

A notícia foi para o ar às 20h52, precisamente cinquenta e dois minutos após o início do Noticiário. Cinquenta e dois minutos preenchidos com assuntos prioritários – domésticos – os temas habituais. Nos episódios do mundo, neste dia também aconteceu um massacre, que só seria importante se não fossem mais importantes as luzes a acender e a apagar da árvore artificial. No Paquistão houve um atentado talibã. Morreram 132 crianças, mas não faz mal, porque lá não se comemora o Natal. Essa fatalidade não enegrece a comunhão entre os homens, que por essas bandas, esta época do ano diz-lhes pouco. Lá não se preocupam com o presépio, os pinheirinhos iluminados, o bom do bacalhau, os sonhos e as rabanadas, os presentinhos. São gentes sem preocupações e como tal amorais. Na Austrália morreram três pessoas, duas que estavam a tomar café na cafetaria errada, e a terceira que sendo bárbara quase não conta como pessoa.  Lá na Austrália, comemoram o Natal e todos pensavam que po

CONTO DE NATAL A UM SEM ABRIGO

Fome. Não é de pão, se bem esquecidos de uma refeição decente. Perdeu-se o apetite pela comida porque ela anda arredia. Faz-se um esforço de Hércules no auto controlo para manter a biologia no seu lugar: obrigatoriedade de viver porque não há outras oportunidades mais interessantes. Não é a fome que revolve os interiores, é a escassez de outros petiscos a cujo preço não se chega. Esses acepipes são palavras, que têm cores fortes, sons agudos, ingredientes de conceitos complexos e muito sérios. Revisite-se o cardápio: Estima. Haverá fatiota mais galante que esta? Calcorrear a calçada trajados de limpo? Lustrosos? Sorrir à cara cheia e estar sempre a tirar o chapéu em mímicas de pantomina aos transeuntes que passam incrédulos pela calçada? Deixar rasto, a espuma dos dias que passam. É isso, vincar o caminho. Útil. Todos os parceiros sem deixar de fora quem está sentado nas margens dos passeios. Dar a mão, receber outra, usar o seu impulso para o acontecimento

MANUAL DE ESCRITA CRIATIVA

- Desculpe mas olho para si e pelo ar latino, não vou falhar se disser que fala português. É verdade? - É verdade. - Tem tempo? Espero alguém. Quando esperamos é porque temos tempo. Digo que sim, se bem a intimidade com o café tenha ficado por aí - Já ouviu falar de escrita criativa? Sabe o que é? Interessa-se pela leitura? Perguntas difíceis. Tento pensar antes de me comprometer com uma resposta. Trata-se de um desconhecido e estou numa esplanada, local incómodo para nos encostarem à parede. Para além disso tenho dúvidas. Tenho sempre tantas dúvidas! - Acho que sei o que é escrita criativa - sobre a leitura mantenho-me calado. O homem, ainda jovem (trinta e poucos talvez) põe-me à frente dos olhos um volume de páginas A4 encadernadas com um espiralado plástico branco e uma mica transparente a fazer de capa.  Reparo, sem saber porque reparo, na gola acastanhada da t-shirt que já deixou de ser branca. Salta à vista esse rebordo na primeira linha da