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A ALDEIA DE CAVALEIRO





«Estás bem apresentada, a boca toda a ensinar os dentes!»
«Casaste bem ontem à noite, não?»
«O ti Quim também parece que dormiu pouco mas não deve ter sido da raladeira!»
«Esqueci-me dos comprimidos.»
«E o que vai ser?»
«Se me apuseres em cheirinho de licor beirão,c’o café ficava bem!»
Uma aldeia que se chama Cavaleiro, abaixo para quem desce ao Sul, de Almograve: uma rotunda com uma rua principal a desembocar numa praia vaidosa, como todas as do Litoral alentejano.
Hoje é dia de inauguração, os da Junta todos em nervoseira: os vendedores de camionetas ambulantes de peixe e de verduras e de batas com cores garridas, tem um novo espaço para feirarem, devidamente assinalado com uma tabuleta minúscula, mas garbosa, que ainda por cima não assinala bem. Correções de sinalética autárquica a serem levadas a Assembleia.
No ajuntamento de poucas casas de Cavaleiro,a caminho do Cabo Sardão, está o bar da Adélia, o único “spot” com conexão ao ciber-espaço, onde se misturam as conversas de gente normal, com os alienígenas, deprimidos de tanto silêncio e ávidos de consultarem a “rede”. 
Cá fora, e porque é verão e faz calor, os velhos esparramam-se à porta das suas casas, sentados em cadeiras - quedos e mudos, até que alguém passe por eles. Em passando, descontrolam-se em cumprimentos, com olhos de grande curiosidade. Meia dúzia de forasteiros num dia é muito movimento, mas é uma animação que vale por todo o ano.
Cavaleiro é uma tentativa de aldeia, mesmo assim cosmopolita: tem dois emigrantes paquistaneses que trabalham nas estufas e duas alemãs fugidas do sufoco, que vivem aqui, sem que nunca lhes tenham visto sinais de prepotência.
 Enquanto os homens da terra falam sobre nada e bebem, os orientais, sentados ao seu lado, não bebem e não se sabe se entendem as conversas. Em todo o caso são gente da terra.
A Senhora Maria e o Senhor Francisco criam galinhas. Ele planta-lhes um campo de salsa para elas comerem e ficarem já temperadas.
Encomendamos duas para um churrasco. Ela estende um lençol branco sobre o chão, uma tábua de madeira e diz que vai pela machadinha. Aparece com um machadão, agacha-se, curva-se e muito velha corta lentamente a carne em pedaços pequenos. Quanto mais pequenos mais fixa a audiência, que um cortar assim é para dar tempo à conversa, e para conversar mesmo que em monólogo, precisa-se gente.
«O meu Francisco diz que eu sou a esgravatadinha, como o juízo das galinhas.»
«O juízo das galinhas senhora Maria, onde é que isso fica?»
« Os senhores estão a ver esta risca aqui, no cimo da cabeça? É onde está o juízo. Isto e as patas que por estarem sempre na terra, é onde absorvem mais os alimentos, são as partes mais saborosas.»
Com ou sem juízo, estavam boas.
Depois de Cavaleiro é o fim do mundo, isto porque se diz que os faróis estão sempre colocados no fim do mundo. Por isso mesmo: para serem a luz intermitente que encaminha os extraviados.
Um farol e um campo de futebol pendurados numa falésia.
O campo de futebol está num plano inclinado (sorte para os que jogam a descer) e tem duas choupanas em madeira para resguardo dos jogadores em dias de canícula, se é que alguma vez se disputou uma partida nesse local. 
Se aconteceu e foi no final de um dia de Verão, os espectadores indecisos na decisão de porem os olhos no acontecimento ou deslumbrarem-se com um céu carregado de estrelas, não ficaram com notícia de que nesse campo tenha ocorrido uma partida de futebol, porque só olharam para as alturas.
À noitinha, come-se moreia frita com as vistas postas para a rotunda de Almograve, na companhia do doce alentejanar dos ti’jaquins que continuam com as mesmas conversas, disputando nos intervalos um ajuntamento de mines, porque a vida e sua filosofia devem ser convenientemente regadas, não se seque a boca das palavras e daí a sabedoria.

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