Avançar para o conteúdo principal

UM BONITO CONTO DE NATAL




“Mãe, fomos à terra do Pai Natal, voltamos para a Consoada”.

Estamos na época do ano em que as pessoas pedem suplemento de mimos, as crianças muitos brinquedos inúteis, alguns velhos carinhos, os sem-abrigo não pedem nada.

E está instituído assim, que todos devemos estar mais sensíveis e disponíveis neste período. Se um idoso nos mendigar atenções em Maio, que é um mês sem ocorrências histriónicas assinaladas no calendário, fazemos de conta que não é connosco, voltaremos a ele em Dezembro, se ainda for vivo e puder falar.

Nesta altura em que se comemora o reencontro, a partilha, a reunião da grande família humana cristã, em que até o a-sentimental mais empedernido olha de relance para o pobre, se apieda tenuemente e lhe atira uma moeda de cêntimos, os homens de boa vontade – escassos - não têm mãos para despachar tanta solidariedade concentrada em meia dúzia de dias. Só com ajuda, e divina.

Que se saiba, só Deus Nosso Senhor e o Pai Natal conseguem prover a todos em todo o momento, possuídos pelos superpoderes da ubiquidade e da omnisciência. Este último dispõe ainda do trenó voador mais rápido que se conhece.

Por isso fomos pedir-lhe auxílio, que este país cheio de velhos, abrigados em tectos frágeis, é um local que precisa de muita ajuda natalícia.

A residência oficial do santo Nicolau é na lapónia, mas tem outras moradas registadas, nomeadamente Carrazedo de Montenegro, de quem é Padroeiro.

Começámos por aí, que apesar de distar mais de quatrocentos quilómetros, fica mais próximo de Queluz (a nossa residência oficial) que o círculo polar Ártico.

Quando chegámos não estava, a senhora que tem a chave da igreja, despachou-nos com a desculpa de não o ter visto ultimamente. Ou desconfiou de nós, ou estava preocupada com a sopa de couves que estava no braseiro a queimar.

Decidimos tentar a Lapónia.

Comemos uma alheira e uma bucha com presunto - para o caminho - enchemos o depósito de gasóleo e passámos a fronteira de Quintanilha deserta aquela hora e quase sempre.

Não é fácil chegar à Lapónia! Apesar de praticamente haver uma autoestrada que a liga a Bragança.

Não é fácil porque de um dia para o outro, o caminho encheu-se de obstáculos, obrigando a fazer paragens forçadas, muitos atrasos e contratempos.

Indiferentes à nobreza dos nossos sentimentos, os espanhóis, os franceses, os alemães, os bálticos, todos, receosos de terroristas que fossemos, a fazerem-se difíceis à nossa passagem.

Sempre a sermos incomodados com perguntas inconvenientes e revistas à viatura e a nós mesmos, procuram coletes suicida e armas automáticas, quando o único objecto cortante que transportávamos era a naifa do Quim, instrumento essencial para cortar os enchidos que dão a cor ao pão.

E as desculpas para não nos querem deixar passar? Era por sermos portugueses à procura do Pai Natal – que é motivo para desconfiar - era por sermos morenos e só os loiros é que gostam genuinamente do Pai Natal, era porque tínhamos um gato chinês dourado sempre a dar ao braço com o punho fechado na chapeleira do carro (o que é que fazia ali um gato daqueles?) era porque o pipo da roda sobressalente não cumpria com a norma europeia.

Um rol de imparidades, ou simples má vontade dos agentes da autoridade, para estes cidadãos do espaço Schengen, dos mais fiéis e pacatos, unionistas genuínos, de boa cepa que nos orgulhamos de soer.

Guia-nos uma nobre missão e eles a desvalorizarem o desiderato!

Saímos da nossa multiétnica e multicultural aldeia de Queluz convencidos que eramos europeus – nós que somos de nos sentir em casa em Portugal como na Estónia -, mas as autoridades locais a não quererem perceber. Para eles, a europa começa na sua fronteira. Foi assim em todos os países que atravessámos.

Tão demoradas foram as explicações e os convencimentos de que eramos pessoas de bem e íamos por uma causa justa, que só chegámos à Lapónia passado o Natal.

Fazia um frio incompreensível e parvo (mesmo com as samarras alentejanas com gola de raposa, as partes mais distais dos nosso corpo, encarquilharam – pode-se lá viver num sítio destes!), não vimos vivalma em Rovaniemi, tudo fechado. Em desespero, descobriu-se um gnomo jeitoso, de barrete verde, a gaguejar assobios, cambaleante, presumimos que do efeito deletério do grogue consumido nas festividades.

Disse-nos num finlandês perfeito que o Santa Claus, cansado das correrias pelo mundo – tudo concentrado: a atenção, o amor, a solidariedade, toda essa azáfama num só dia de trabalhos – e com a consciência dos deveres distributivos cumpridos, arrumado o trenó e desemparelhadas as renas, tinha partido de férias para a residência de Carrazedo de Montenegro, paradeiro longínquo de climas amenos e gente macia.

Só podia estar a mofar! Das duas a que seja a melhor: ou o gnomo estava inibido temporariamente da razão, ou o raio da porteira da igreja de um raio, também caturra (e que se dane a concordância e o estilo da frase), folgou com a nossa cara, de suburbanos pacóvios.
Tanto quilómetro em vão, só para termos a certeza de que afinal e apesar do que nos diziam constantemente na televisão, não eramos benquistos em lado nenhum, nem já em África (que não vem ao caso para esta história tão bonita).Ainda por cima sem rasto do Papai Noel.

Regressámos. Desta vez foi tudo muito mais fácil, era só apontar para o Sul, dizer Portugal, que os guardas com cães levantavam as cancelas das fronteiras, muito mais relaxados os primeiros, babando-se os segundos, que se não estivéssemos já suspeitados, acharíamos que nos queriam era ver pelas costas.

Mesmo com estas mesuras e o caminho desimpedido, a distância era longíssima pelo que só chegámos em inícios de Janeiro.

Falhámos na missão de trazer o Pai Natal para ajudar no consolo dos precisados, falhados e derreados, eles e nós.

Por amor próprio – justificação esfarrapada – insistimos uma vez mais numa paragem em Carrazedo. São Nicolau mandou um serviçal enxotar-nos. Cá fora transpareciam ruídos de farra, vislumbravam-se recortes de sombras nas janelas iluminadas, ouviam-se sons cheios de swing, estava lá de certeza! mas nem quisemos saber mais dele, voltámos a Queluz esmorecidos.

Esperava-nos uma ceia tardia com restos da “roupa velha”, entretanto congelada, e filhoses que foram frescas na semana anterior.

Na manhã seguinte, demos conta por observação no terreno, testemunhos vários e supervisionamento televisivo, que afinal as crianças já estavam muito mais brandas, agora na fase de negação dos brinquedos entretanto destruídos que tinham recebido no sapatinho. Os velhos, passado o prazo em que lhes devíamos mais atenção, continuam velhos, insistentemente velhos, iguais de gastos todos os meses do ano.

Enquanto se desenrola esta conversa, sabemos que houve festas para os desabrigados, que a seguir voltaram a frequentar os mesmos cantos esconsos onde alucinam de não conseguir dormir nas noites arejadas e frescas nas suas “casas” a céu aberto.

Tudo está igual e na mesma. O mundo assim segue: funâmbulo, nos equilíbrios instáveis, a fazer despreocupadamente ginásticas sobre os abismos.

A nossa fé ficou abalada, andamos ansiosos desde miúdos e até hoje nunca conseguimos ver o Pai Natal. Todos os anos se escapa com a cumplicidade do escuro da noite.

Não fossemos nós, os homens, e as crianças ficariam desconsoladas, os velhos não teriam nem um abraço e um bolo rei, e os indigentes uma manta nova e um gorro de pai natal com luzinhas a piscar no frontispício da testa.


Começamos a achar que ele não existe. Quem faz os milagres somos nós, e tão humildes somos, que lhe damos a assinatura desses méritos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,