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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2017

PORQUE NÃO SOU JURISTA

Os meus pais queriam que eu fosse jurista, mas escapei-me. Fugi para casa de uns primos afastados que tinham um negócio de venda de bifanas itinerante, numa rulote, na Alsácia. Tornei-me vendedor ambulante. Encontrei o meu caminho e sou feliz, mesmo pagando impostos elevados. Recebem-me quando venho no verão matar saudades (já me custa falar), mais da terra do que das pessoas, mas não são espontâneos, sei que no fundo nunca me perdoaram. Não foi por não ter sido doutor, foi por não ter sido jurisconsulto, a carreira mais habilitada ao sucesso de todas as que existem, segundo a sua opinião e de conhecidos seus que frequentam a pastelaria “Boca Doce”, na venda de fruta da Dona Joaquina e na farmácia “Central” que nunca conheci o dono, só o empregado que se chama Carlos e é da minha geração. São capaze s de ter razão, descobrem-se jurisperitos , e bem sucedidos, em todas as profissões: ministros quase todos, parece que foram feitos para ministros; políticos e deputados,

MELANTROPO (palavra inexistente)

REFLEXÃO: DO BEM E DO MAL

A origem do mal não se sabe, nem a do bem.Podem não ter origem nem existirem. Aceita-se que uma flor faça essa distinção, a seu modo de distinguir. É difícil acreditar que um seixo redondo do rio o faça, ainda assim aceita-se a possibilidade, num esforço de acreditar. O que dizer dos homens, que escrevem belos livros e entopem o mundo de escritos e escritos, sobre todas as matérias? Finos pensamentos sobre conhecimentos vastos, entendimento das coisas transcendentes e outras, tudo, tudo. Porque se equivocam tanto nas distinções das coisas? Algumas tão simples e triviais?

CHOVE

Hoje chove torrencialmente tudo. Alegrias, tristezas, e até água, o que complica ainda mais, ensopa os estados de alma.  Até que sequem, é um aborrecimento, e por vezes fica-se a cheirar a mofo.

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

LOUCA

A poesia é a louca que admiramos porque diz o que se adivinhava indizível. A poesia  desarma as palavras tíbias ditas em prosa  e não pede autorização à consciência. É rebelde, indomável, mas quando regressa dos seus não esperados passeios não se sabe onde, pomos a melhor toalha de renda para a receber.

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

HÁ DIAS MUITO A JEITO

Hoje foi bom. O tempo simpatizou connosco, aqueceu-se, afastou cenários lutuosos. Foi mesmo o grande acontecimento do dia, a sua mudança de humores. Do que sobra para dizer é quase nada e displicente: não nasceram nem mais nem menos pessoas do que ontem; algumas vão ser absolutamente irrelevantes na sua passagem, outras não, algumas ainda vão ser híbridas. Do número de mortos contabilizam-se mais ou menos os mesmos da véspera, uns irão a enterrar outros ficam anónimos de como atravessaram a vida com pressa de saírem dela para o nenhures. Se alguma guerra terminou não se deu conta. Se começou uma nova, daremos conta no noticiário do jantar, mas já é difícil comover-nos. Crianças órfãs, violentadas, violadas, contam-se por muitas, mas não é preocupante porque ontem e o dia de amanhã dirão uma contagem idêntica. O número de vilões  per capita mantém-se estacionário, apesar dos pessimistas acharem que a tendência é para aumentar. Os optimistas, fiéis à sua fé,

IMORTALIDADE

Não me faltas porque te absorvi. Abriguei-te em definitivo na finitude tua, que será um dia a minha. Assim continuará com os meus filhos e os deles. É a imortalidade.

PÁTRIA

O meu lugar é uma pequena aldeia por onde passa um pequeno rio sempre a correr. O rio da minha aldeia sujou-se. Não tem metafísica. Admito perante todos que não tenho aldeia. Apesar do rio da minha não-aldeia estar poluído, nauseabundo e ser pardacento, eu não abdico da metafísica. E gosto da ideia de ter uma aldeia, com um rio que pode ser riacho desde que desague no mar, dá-lhe grandeza. Essa é a minha condição fundamental, ter sítio, o resto são pormenores sem importância, como existir ou não uma aldeia com um rio ou não a atravessá-la. E a metafísica.

AS SOMBRAS

É a época em que os homens se perderam da sua sombra. Rareia a luz que projecta a silhueta preta dos corpos na calçada branca. Orfãos de sombra os homens defrontam o mundo sozinhos e assustam-se. Algures alguém da condição humana, de querer fazer uma escolha, má, capturou a luz, fez a pior das escolhas. Não foi ingénua essa decisão. Pouco se pode fazer agora, a luta afigura-se desgastante e vã. No epicentro da indecisão, nas opções naturais e outras inconcebíveis mas que são opções, entre o estar quieto e dar sinais de vida, e enquanto ainda assim se luta porque é cobardia desistir no que se acredita, a poesia ajuda. A poesia não é ingénua, nem as artes, nem os engenhos do homem. É criação e liberdade, e mesmo que o corpo esteja preso, a boca cosida e muda, as mãos algemadas e sem movimento, a arte não se deixa capturar, foge por entre as mãos dos carrascos que asfixiam o vazio e desesperam e urram, brutos, porque por muitos corpos que capturem nunca conseguem

PASSAROLAR

Era ainda noite parda. Na insónia apanhei de ouvido, um, ou muitos pássaros. Não sei se pequenos, se grandes, onde estavam, perto presumo, porque se ouviam bem. Não havendo árvores por ali, eram pássaros pousadores nos beirais, dos livres e voadores. Vinham de uma noitada, ou acabados de despertar na antecâmara do novo dia. Não sei. Pararam temporariamente nos arredores da cabeceira da minha cama, separados pelo lá fora, eles, o cá dentro, eu. Enleado nos lençóis. Livres e voadores, os pássaros. Presumido de livre mas preso à cama, eu. Ali, aquela hora, pousados, criaram um lapso de tempo para fazer conversa. Pareceu bastante tempo, mas à noite nunca se sabe porque está escuro. Atento, curioso por entender o que estavam a dizer, concentrei-me nas modulações dos seus pios, e identifiquei diferenças. Julguei até perceber que havia uns mais piadores e outros que só ouviam. Pode ter sido um devaneio, julgo que não. Quase garanto neste dia que ainda não o era que h

MACAQUEIO

Num dia assim, sem pretensões, com as brisas suspensas e uma luz despejada, simples, o que logo me apetece é fingir que a vida é bela. Possuído por essa sensação quente, macaqueio por aí, muito solto, saltitante. Só puxa a gargalhar em grande estilo, um gargalhar de quem não tem contas a prestar. Quando acontecem esses dias, catrapisco o olho às moças que passeiam pelas ruas - à espera elas de serem catrapiscadas - e mando as contrariedades darem uma volta.  Dou folga aos dois: aos contratempos e a mim.

OPERÁRIO DAS FRASES FEITAS

Tenho a desgastante tarefa de escrever frases inúteis. Serão lidas, com sorte, uma única vez. Depois lixo. Escrevo as frases mais efémeras que existem. O propósito é mesmo esse, escrever frases sem emoção para serem lidas uma só vez. Não são feitas para se ficar a pensar. Não temos tempo. Alguém tem que fazer este trabalho, outros, muitos, se puderem arrastam a minha honradez na sargeta para ocuparem esta cadeira. É alimentar o rastilho de um equívoco desinteressante e inventam todo um enredo, com personagens e boas mentiras. Os tempos não estão para facilidades. É mil vezes preferível ter algum nos bolsos e ser precário, e aceitar enxovalhos do que os ter cheios de zeros.  Já vi passarem muitos rostos sem expressão por este local. Esqueci-lhes os nomes, se os tiveram. Tem que se ganhar o sustento, este é um trabalho como outro qualquer. Nem melhor, nem pior, uma forma de ir perdendo a vida a conta-gotas com algum dinheiro para comprar cenouras. Nunca tenho horas para sa

DO DIZER

Se adequadamente eu soubesse desenhar as letras que formam as palavras que exprimem as coisas tão belas e todas, escrevia mensagens ternas e de amor. Perdi esse roteiro, não sei fazer, apaguei a memória dos seus contornos e as mãos estão autónomas de mim. Nem dizer consigo. Olho para ti, faço o esforço de tentar, mas estou prisioneiro de uma boca muda. Apesar da resistência dos meus olhos, a quererem falar em sua substituição, tu não me entendes. Nem eu do dizer-te o que queria tanto, a ti. Que esqueci

SEMPRE PEQUENO

Mãe por que tenho que crescer se um dia vou ser hipócrita e cínico e corro seriamente o risco de vir a morrer sem ter tempo de branquear essas nódoas que me mancham, soçobrando sem glórias, a uma vida absurdamente fugaz? Posso ficar a brincar na rua distraído de tudo, mesmo do sol que está quente e agradável e é fundamental, mas eu não ligo nem sei da sua importância? Não há nem nunca vai haver assunto mais sério e imprescindível que jogar à macaca ou ao eixo. E se não crescer, não morro.