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PERCURSOS DO DESASSOSSEGO


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PERCURSOS DO DESSASSOSSEGO

“A arte serve como fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer” , diz Pessoa.

É o livro do Desassossego, um espaço enorme, sem fim, misterioso, sugestivo, que me encaminha para a criação dos meus percursos do desassossego. Este projecto é,  como me acontece frequentemente, a consequência de um eco, que ecoa persistentemente na minha mémoria, desde a primeira leitura deste livro que ocupa dentro de mim um espaço mental meu amplo e profundo. Em  Março de 2016, tomei a decisão, impulsionada por esta intensidade emocional, de rumar a Lisboa, percorrê-la durante quinze dias.

Nesses percursos vou transformando em experiência, o que a minha imaginação alimentou durante bastante tempo. A subjectividade do heterónimo de Pessoa ,  Bernardo Soares, projecta-se sobre as banalidades da vida e do quotidiano, e as minhas emoções baixam um filtro sobre as minhas reflexões.

Durante quinze dias, quinze percursos diferentes conduzem-me à Baixa. Capturo imagens, sensações, evoco a Hamish Fulton, sobreponho os meus pensamentos com os de Bernardo Soares. Reescrevei os percursos, tornei física uma pegada que antes era espiritual. E neste sobreposição mental surge a sobreposição do caminho feito e o seu espaço vazio. O caminho suprime-se quando em movimento andamos., mas destacar a sua ausência torna-o mais presente do que nunca.

Da ideia da experiência, da reflexão ao reflexo, da sobreposição mental à sobreposição física, da presença e da ausência, do exterior e do interior, tudo são opostos, transições que se tocam, que faz este projecto tão coerente como profundo.

Com a morte de Fernando Pessoa foram encontrados vinte e sete mil quinhentos e  quarenta e três documentos num único baú.

Faço intenção de guardar o espírito desse tesouro.

Soledad Sevilla, Maio 2017




Percursos em mim

Texto para o catálogo da exposição de Soledad Sevilla –Galeria Passevite – 13 Maio 2017

No querer estar parado, é um andar contínuo. Dentro e fora, sendo a porta eu. Percorro diariamente as ruas da Baixa e as ruas do meu mapa interior, algumas sem nome. Atarefado de nadas, que somados me enchem, absorto em ideias e pensamentos vagos. Volto com frequência a muitas ruas num automatismo de rotinas, noutras entro e saio pela primeira vez, mais as interiores menos iluminadas, não lhes conheço toponímia.

Ando pelas ruas como na vida: pondo os pés cuidadosamente no chão, quando ganho balanço dou passos sem dar conta de que o faço. Entro então num estado quase nirvânico de desprendimento, sem nenhuma intenção espiritual, só a de ser absolutamente ateu no andar, a menos que se considere espiritual o desapego de mim próprio e que ser um ateu muito crente seja uma fé, exclusivamente minha.

É esse o meu deus: uma treinada ausência da percepção de mim. Há momentos, felizmente não muitos, em que tenho vislumbres de não ser totalmente assim, quando me cortam o fornecimento de água. Um dia terei que analisar esse assunto mais seriamente.

O que ando a representar por aqui - nas ruas, nos escritórios onde marco os pontos, e digo os bons dias, à força, fingindo que sou como eles, mas não - não sei.

Uma boa desculpa era dizer que o faço para ganhar o dinheiro que me falta, porque mesmo desprendido preciso dele para executar todas aquelas coisas obrigatórias do sobreviver, como passar pelo Abel e apreciar sem que ninguém me aborreça, faça reparo, ou deixe de servir, porque não fica fiado.

Gosto de me ver com chapéu, embora considere ridícula a figura que faço com chapéu. Aparte esse pormenor de estilo, nada de especial me atrai em mim, pelo que não tenho mais nada a acrescentar.

Doutros botequins que frequento, estabeleço-me com regularidade e tertúlio, quase sempre calado, ouvindo os outros que têm declarações muito mais importantes e fundamentais a anunciar ao mundo do que eu, um mero transeunte atarefado e distraído no abstracto.

Passeio-me pelas ruas só porque tenho que me deslocar mas convenço-me todos os dias que ando, que o faço por ser um caridoso acto higiénico a que me obrigo a conselho médico. Não fosse esse convencimento e não moveria um único músculo dos pés, dos dois de que sou possuidor. São-me completamente inúteis nas minhas longas caminhadas, no filme ininterrupto que se projecta nas paredes da minha cabeça e do qual nem me vejo como protagonista, mas como um simples espectador numa das filas do meio, onde se vê melhor o ecrã.

Há muito tempo que descobri a forma de me deslocar estando parado, já não preciso dos pés para nada fundamental.

Nesta actividade incessante de pensar que vagueio por aí em viagens transatlânticas e outras regionais, tenho carimbos no passaporte de todos os países, esgotei as línguas todas.
Como nunca viajei mas minto-me que sim, invento-os novos, o que me dá um convívio com línguas antes desconhecidas, inexistentes, de uma beleza apuradíssima, mas sem futuro nenhum porque logo as esqueço quando invento outras, e elas que já antes não existiam por serem uma criação minha, ainda menos vivas ficam, abandonando-as sem remorso.

Sobre as geografias, o que posso dizer? Vejo cataratas únicas e pouco normais de água que corre no fluxo contrário das leis da física, do lago para o cimo do penhasco, grande espectáculo; admiro com curiosidade águas dos rios de cores outras, inusuais; dou com plantas transparentes, quase a não se verem mas viçosas e exuberantes, à sua maneira de mal vistas; cruzo-me com animais que não posso dizer que são inventados por mim, porque ao não conhecer todos os que existem, não posso afirmar que não existem. Desconfio no entanto que a grande maioria é fruto da minha imaginação.

Tudo isto constantemente, numa viagem interior, a qual, não fosse a fisiologia do meu ser orgânico, como já disse, e não teria necessidade de sair de mim, que é a secretária onde me sento, em frente da janela, a olhar portuguesmente para a rua, sonhando com mundos excêntricos.

Excêntrico é também a opinião que tenho da minha pessoa e temo que os outros estariam de acordo, se um dia me olhassem e vissem.

Para não ter desilusões nem comentários desapropriados que me desgostem, não me dou com ninguém, reduzi eficazmente a zero a possibilidade de um vexame me vir a acontecer.
Sou como essas plantas: transparente.

Fora tudo isto que é tudo, tenho rotinas enfadonhas: degusto a custo no Martinho e no Pessoa, beberico no Abel como anunciei, a menos que seja café, esse no Nicola e na Brasileira, dos que agora quero nomear, há outros por onde passo de raspão.

Sobre o resto, nada mais, nem cartas de amor, um devaneio breve que foi um tornado, fez a sua devastação e passou. Tenho portanto com a vida um tracto de me arrastar em intenso tédio, em que desatento não olho e não vejo quem se cruza comigo.

Para passar o tempo, escrevo versos.

É indiferente o movimento das ruas, as cores das roupas estendidas nos estendais, se a relva cresceu ou não nos jardins públicos, o azul do céu, o azul, outro, do rio que é mar, tudo, mas só de pensar e agora que se fala nisso fico logo com saudades de ser indiferente.

Talvez um dia venha a passear por Lisboa. Detidamente, parando ocasionalmente para admirar uma bela mulher, um belo homem, um belo cão. Ou para ver uma parede pintada com cores garridas por miúdos reguilas, a cobrirem um prédio degradado que fica útil por deixar-se embelezar.

Lisboa tem primavera todo o ano, eu porque sou egoísta de mim, nem me tenho dado conta.
É o desassossego que me desarma mas já foi dito, e escrito, já não há nada de novo e estimulante para dizer sobre o desassossego.

Sou o que me penso.

Luis Robalo
Maio 2017


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