Avançar para o conteúdo principal

ASCENSORES





São três a disputarem a pulcritude das ascensões às alturas, que para baixo todos e mais os santos ajudam. A subida é pouca, somo merenscórios (melancólicos, para dar oportunidade a palavras que ventaneiam pouco) e pequenos, obedientes à escala humana, inclusive nos altos e nos baixos. Seja como for, uns cem ou duzentos metros no altímetro, acerca ainda assim as pessoas do céu ridente e de um azul que os locais dizem ser só seu – se é isso o patriotismo, seja esse azul o mais belo de todos - a pintar esse espaço infindo, nesta cidade de Lisboa nos meridianos dos fins das Europas.

Andam os três em disputa desde os finais do século dezanove, quase clubes de futebol, que depois de ter sido escrito duvida-se da escolha do exemplo que não é dos mais apropriados!  

A sua missão nos tempos arcaicos – quando o  interior das carruagens se iluminava tenuamente com luz de velas, e o sistema de subida-descida se fazia por contrapesos em depósitos de água nas próprias carruagens - era aproximar as pessoas locais dos seus lares antes e depois da lide dos dias.

Ligações rápidas da rua de São Paulo abraçada ao rio e ao Mercado da Ribeira; da Baixa, dos grandes escritórios, dos serviços, do comércio. A Baixa e o Chiado eram o centro da cidade, o espaço cosmopolita. Os bairros eram aldeias onde as pessoas dormiam e repousavam dos seus aporrinhamentos. Lisboa era uma colagem de “Portugal dos Pequeninos”, implantado nos vales e nas colinas suaves, mas vaidosas das vistas que oferecem.

Bica, Lavra, Glória. O último pelo nome eleva igualmente a outras alturas. Que se cuidem as palavras, os encómios. A haver crítica, seja polida e dissimulada, não estão tempos de anátemas religiosos. Com os nomes dos outros pode-se bem, são populares, aguentam tudo, não estão preocupados com excomungos, e não são fundamentalistas a não ser, considerarem-se cada um mais bonito que o outro.

Hoje em dia, transportam residentes de curtíssima residência – nem sabem eles que os nossos bairros são aldeias – que procuram vistas finas nos miradouros da cidade. Tantos são, às vezes mais do que um para cada colina, a oferecerem ângulos diferentes. Lisboa é um caleidoscópico inesgotável.

Nesta disputa que é coisa pessoal de quererem transportar mais turistas hipnotizados pelo pitoresco dos trajectos, é o da Glória o mais entediante, oferecendo na maior parte do percurso uma visão trivial de muros decadentes. No entanto é o que mais gente transporta. Três milhões de almas por ano.

O da Bica é sempre a subir e tudo a direito. Começa dentro de um prédio, é o seu rés-do-chão, só que se move. Na sua subida é cruzado por pequenotas ruas e ruelas e povo do verdadeiro que durante o dia se atravessa nos buliços do quotidiano. À noite não descansa, com bares de alto a baixo e vice-versa nos dois lados, gente jovem de um lado para o outro, entrando e saindo dos locais de beber e seduzir. No Bairro da Bica já se percebe que se descansa pouco.

O do Lavra é o que oferece mais curvas e contracurvas rococós, querendo isto significar, que é o mais janota de vistas. É íngreme, bonito, misterioso, citadino, bucólico. Dos três é o único que dispõe de uma porta de saída- entrada, que limita o vazio. Ou seja, quem entra, continua do outro lado, no mesmo céu aberto de antes.

Adiantou-se tanto a conversa, a mais de meio caminho do discurso e não se apresentaram os protagonistas. É como as cerejas, já se sabe!

O tema são os Ascensores de Lisboa (o de Santa Justa não entra neste despique, está noutra classificação). Na opinião do escrevente, “funicular” é um nome que soa melhor, mas enfim, não se usa.

Já foram completamente amarelos, da mesma cor dos eléctricos – agora poucos os eléctricos, conquistados pelos transeuntes de estadia apressada, que querem ter essa experiência, única, irrepetível, de ver o que eles pensam ser uma Lisboa condensada no trajecto de eléctrico, o “28”. Alguns saem mais leves de “carteira” no final dessa aventura marcante nas suas vidas.

 Agora são escassamente amarelos e muito muito graffiti. Não importa se estão mais bonitos ou com um ar desleixado e pobre. É arte urbana, está de moda, é intocável, a alguns autarcas calha-lhes bem armarem-se de modernices e facilitismos que eles nem sabem justificar, mas pronto.   
               
Avilanados ou não, os turistas tiram-lhes fotografias na mesma. Os turistas tiram fotografias a tudo, principalmente a si mesmos, enquadrados com uma lata de conserva de choco, um poster gigante de um pastel de nata colossal, um nepalês merceeiro com a camisola da selecção da nação, todos os três nas suas costas, a fazerem um enquadramento, para mais tarde ou jamais recordarem.

Os nossos funiculares foram projectados e construídos pelo senhor Raoul Mesnier du Ponsard, que apesar do nome era português.

Uma curiosidade: as portas dos ascensores são em cancela pantográfica, que sendo o que sendo, de um nome assim não se livram, mesmo a pedir reparo.

E pronto, fica tudo ou quase nada dito. Se tiverem oportunidade, num dia de chuva intensa, que caia granizo, ou pelo contrário a temperatura passe dos quarenta o que já nada é raro de acontecer nos climas, aproveitem para dar uma voltinha num deles ou mesmo em todos. Só em dias adversos é que é ainda possível arranjar lugar, todos os outros estão preenchidos com as hordas de gente que tão bem contribui para o PIB, que nunca foi tão jeitoso e abastado.


Obrigado a eles, aos ascensores, os nossos foguetes para o paraíso.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,