As crianças passam os dias na rua esticando o limite em que o
chamamento saloio das criadas para o jantar, se desenvencilha do bruá dos putos
no pátio e é ouvido, com desalento e ombros descaídos por se encerrar a jornada
das brincadeiras.
A rua é uma enorme casa sem telhado nem paredes, é um lar porque
é íntimo e seguro, os miúdos conhecem-lhe os cantos e as esquinas, sentem-se
bem. A casa propriamente dita aprisiona, com pais e avós e tias solteironas,
encalhadas, todos entram, saem, andam o dia de cenhos franzidos, atarefados de
quê?
As criadas vieram da terra - os miúdos não entendem o que é isso
de vir da terra - são os únicos adultos, ou quase, divertidos que não andam
franzidos, sorriem tão genuinamente como as crianças e algumas passam o dia a
cantar modas suas, umas alegres outras menos. Elas são também divertidas porque
se deixam-se afagar, fingem que repelem com um não a dizer sim, que aceitam.
Passa-se a palavra, disputa-se a criada de cada um, os primeiros passos para
o conhecimento da anatomia humana.
A casa de dentro – chame-se assim – é onde se reúne a família no
momento das refeições, calados, obrigados a ouvir as histórias enfadonhas dos
adultos que falam por ordem de idades e sexo. É onde se dorme e se é obrigado a
apagar a luz sem se poder acabar a arrebatadora história do Major Alveja, e as
suas batalhas aéreas nos céus da Mancha, lidas e relidas e mais do que
decoradas, as folhas gastas do uso e dos empréstimos repetidos aos amigos.
Com os lençóis e os cobertores constrói-se uma ideia pessoal que
se tem de tenda de campanha, para se poder continuar a ler com ajuda da luz de
uma lanterna, para não serem apanhados pelos mais velhos. Lê-se até que as pilhas
se esgotem, o que está sempre a acontecer. Depois é um período de interregno, enquanto
se junta dinheiro para comprar pilhas novas. Esse tempo de amealhar é uma
primeira ideia de eternidade, não se vê o dia chegar!
De bom e fazendo esforço, em casa, só a televisão quando passa
futebol ou as touradas. Os serões musicais, ou de teatro eram mais apreciados
pelos crescidos. Havia uma tia gorda com um nome pateta e ela própria um pouco
atontada, que escolhia os dias das touradas para fazer visitas nunca desejadas
por ninguém, a julgar pelos cenhos ainda mais vincados quando ela batia à porta
invariavelmente perto da hora das refeições. Jantava enormemente muito, apesar de
jurar e repetir de modo veemente que já tinha comido alguma coisa antes de vir e
estava bem. Depois de comer, com poucas conversas, sentava-se na primeira fila
e fazia o relato de toda a sessão tauromáquica, como se tivesse sido filha de
ganadeiro, noiva de um forcado, ou amante do corneteiro que dá as ordens ao
espectáculo.
Estar em casa não é mau quando se está doente, ou fingido, o dia
todo de cama, com febres ou a fazer-se ter, com massagens no peito, agradáveis,
cheirosas, revigorantes de vick vapour-up e a ouvir telefonia, naquele tempo a
preto e branco.
Resumindo, na rua estende-se o mapa das possibilidades do mundo
e tudo pode acontecer. Em casa descalçam-se as botas e repousa-se da velocidade
estonteante dos dias passados fora.
Guelas, caricas com a cara de jogadores famosos, guerras de
soldadinhos, carrinhos da matchbox e
corridas nos bordos dos passeios, pião, bola claro! Apanhada, cabra cega, macaca,
saltos nas cordas, elásticos, são as peças do puzzle do dia e que depois
continuam encadeando os sonhos da noite.
Não há um minuto de sossego, uma paragem para descanso, está
tudo planeado num guião de casualidades, umas coisas dando as deixas de entrada
às outras.
Neste tempo as ruas são muitas para os carros poucos, os
autocarros são verdes e têm dois andares, e sabe-se que os utentes mais jovens
utilizam o andar superior, não se sabe o porquê dessa preferência, mas terá
algum motivo. Para os mais pequenos, se estiverem livres, os melhores lugares
são os da fila da frente do segundo andar. Com o balançar providenciado pelas
molas do veículo, tem-se a sensação que se está no ar.
Neste relato as pessoas são escassas, os adultos não passeiam a
não ser em jardins e aos domingos. E nos jardins, nesses dias, são mais
sopeiras e soldados atrás delas. As poucas pessoas que circulam, vão com propósito, aos afazeres, concentrados e sérios. Algumas, principalmente
mulheres, param ocasionalmente e falam com outras mulheres abeiradas nos
parapeitos da janelas dos rés-do-chão dos prédios. Havendo poucas lojas,
algumas dessas janelas são na realidade montras.
Mulheres que fazem fatinhos de bebe em malha, mulheres que
cerzem meias de vidro utilizando-se de um ovo em madeira para moldar a meia e
encontrar a falha, mulheres que são costureiras, só mulheres.
É um tempo de mulheres e crianças. Os homens chegam tardiamente
e são austeros.
Há leiteiros que deixam o leite à porta de casa das pessoas e
ninguém rouba, há padeiros que deixam o pão à porta de casa das pessoas e
ninguém rouba. Há mesmo aguadeiras qua andam com cântaros de barro à cabeça a
vender água fresca de Caneças, que é um sítio algures e compra-se porque a água
canalizada das casas não é de confiança. Mais aos domingos os amoladores que
têm um sistema engenhoso ligado à roda das bicicletas, amolam tesouras e facas
e endireitam varetas de chapéus de chuva, enquanto assobiam melodias simples
numa gaita que se esqueceu o nome. É tão bom ouvir esse som quando ainda se
está na cama aos domingos.
Os polícias são poucos e andam geralmente a pé. Têm barrigas
proeminentes com bigodes farfalhudos na cara. Dão-se ao respeito. São de uma
antipatia absoluta. Calcula-se que são escolhidos por serem os mais antipáticos
dos seres disponíveis para polícias, lá das aldeias e repetem os testes de
admissão para não terem dúvidas que escolhem aqueles em que o azedume é genuíno
e impregna a totalidade do seu ser.
Os polícias acabam as suas vidas com poucos amigos e suas
mulheres, de buço competindo com o deles, mandam indecentemente nos maridos.
Mas isso não se sabe, porque neste tempo só há brandos costumes, em casa
ninguém mete a colher e não é reconhecida oficialmente nenhuma espécie de vício
ou desvio normativo. Em todos o caso também as mulheres dos polícias são seres
carrancudos.
Estes tempos têm um ar carregado a prenunciar mudanças. Os
transeuntes desconfiam que está alguma coisa para acontecer, mas é mais sensato
ter a boca fechada do que aberta, ninguém diz nada, a menos que sussurrem
portas adentro. Seja como for as crianças não estão atentas a coisas de homens
grandes e portanto os dias são gloriosos, intermináveis e dão mais prazer que
um rajá gigante a saber a ananás aguado, apesar deste também ser bom.
A lista das hierarquias é simples de decorar e uma vez decorada,
é um descanso para toda a vida.
Primeiro Deus, a seguir o grande estadista, depois os homens, as
mulheres, as crianças - e nestas, primeiro os rapazes e depois as raparigas -,
as criadas, os pobres e os analfabetos. Há mais pessoas que não sabem ler nem
escrever do que o contrário.
Nas colónias, locais longínquos e exóticos que se têm de decorar
na escola primária (as províncias, os rios, as montanha, as linhas
ferroviárias, os recursos, a população), há os colonos brancos, os pretos e
animais igualmente exóticos que nunca mais acabam. Os primeiros estão no mesmo
nível das mulheres, os outros estão na categoria dos pobres e dos iletrados,
ligeiramente abaixo até.
O país está em guerra, mas é longe e as crianças não se dão
conta. Vê-se na televisão soldados a enviar beijos à família e às namoradas, e
há um serviço postal que se chama aerogramas.
Os rapazes gozam de mais liberdades que as raparigas, mas
algumas de carácter vincado, começavam a desnovelar os nós de uma vida onde acirandam as mães e outros bafios. Desponta
uma espécie de feminismo em modo suave, uma contestação em surdina aos
arbítrios dos homens, algumas já vêm brincar para a rua, todavia ainda baixam
os olhos.
Tempos de novos convívios, ainda incómodos, para elas que se
aventuram nos deslumbramentos fora do universo estreito das formas dos bolos e
das agulhas de costurar, e para eles na cedência de espaço que era só seu, tímidos
galarós presumidos de à vontade.
Todos os géneros acabam por se fundir e moldar no grande pote da
infância e quase todos recordam com nostalgia o tempo do tempo parado.
Vai pois começar o dia de ontem…
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