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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2017

A FALTA

Faltas a fazer um teatro, naquele dia, para nós. Não estava à espera, E afinal não há um dia que não aconteça. No que foram tantos sobressaltos, Afastamentos, Silêncios impostos dos dois lados, Cansados um do outro. Agora falta tudo, todos os dias. Cheiro, voz, gestos teatrais, Exuberâncias, excessos. O faltares assim que não se imaginava, arde. Falta um “Nós” que se foi contigo, Apesar de dar comigo a dar contigo a sorrir, Inesperadamente, a qualquer momento, Quando me vem precisamente à cabeça Que me faltas tanto. Porque foste egoísta e morreste? No entanto sorrio das tuas macaquices, e já passou.

EGÍPCIA

Tens o perfil de uma rainha do Egipto clássico, uma efígie esculpida num muro cor ocre da cor que tem a terra desses lugares. É imponente dizê-lo, a melhor aproximação aos outros da tua beleza, a que os meus olhos veem. Ao dizer que tens um perfil egípcio, remato a questão e posso continuar a viver, honesto, porque soube descrever: o contorno da fronte, do nariz, da boca, de um queixo delicado com ângulos pronunciados. Do resto nada sei, ficámos anónimos desconhecidos por decisão mútua. E o intervalo em que te vi a olhar para a montra, Cruzarmo-nos, olhar uma vez mais para trás, e continuar, foi o tempo de achar que tinhas uma efígie egípcia.

O MEU PEQUENO MUNDO

No miradouro do castelo de são Jorge, não vislumbro todo o mundo, avisto o meu mundo todo. Há dias que me emociono de o ver, estendido, assim, perante mim. Outros em que o repudio, com essa ideia que agora tem de se deixar levar por uma certa lassidão. Arranja-se demasiado para os outros, desarranja-se-me. Gostava de o ver simples, sem a cara esborratada de batons exuberantes, como era. Não preciso de grandes mundos, para ser do mundo. Prefiro-o pequeno e maneiro. Na dimensão de o poder agarrar, ou assim julgo, quando encostado ao beiral do miradouro, estico os meus braços e toda a sua extensão até à ponta dos dedos. E, fechando os olhos depois de o ter absorvido, o mundo, imagino-me num prolongado abraço, a apanhar com a posse toda de ser meu, o perímetro inteiro da cidade, a que eu chamo mundo.

FRASES DE AMOR

Não saem frases de amor, Com ambição de virem a ser poesias de amor. As tentativas, bambas, são rebuscadas. Por decência e respeito, não se insiste. Limitar-se a ler belas frases de amor, em doses homeopáticas, Escritas por pessoas competentes. Sendo tantos a fazê-lo, Poucos os que se conseguem ler. Leva-se uma vida e às vezes não chega, para construir uma frase de amor decente, Que valha ser dita.

ONTEM - FOLHETIM 7

Eram duas perinhas em maturação, a seguirem canonicamente o ciclo de crescimento para a perfeição. Não, dois montes. Exemplares. Não era inevitável olhar, era cola, não despegavam daquele regozinho, no vale acentuado, que quasi escondia mostrava esses dois montezinhos tão sensuais, uma escalada suave ao paraíso e ainda não se sabia o peso dessa palavra – sensual – na afinação das mecânicas do mundo. Mais tarde. “Minha só minha”, todos repetiam, reclamando para si o que nessa idade ou outra, jamais se pode vir a reclamar como seu: um usufruto que pratica o funambulismo no fio da navalha, às vezes com muito custo, a preço de incontáveis concessões. Mas apetecia dizer, saía, sem se saber porquê, uma coisa atávica, um despertar das células, muitas em uníssono, uma pulsão forte fora da possibilidade de qualquer controlo da razão, nem mesmo para os que iam cursar gestão. Dizia-se cursar naquela altura. Mais do que um brinquedo - todos os brinquedos - dão-se todos sem remorso,

A METAFÍSICA

Temos a importância do peixe, Da medusa, a lindíssima mas perigosa medusa. São o que são, incontornáveis. A coruja com os seus olhos desconcertantes, Um pássaro atestado de personalidade. As flores, com todos os argumentos para serem adoradas. As pedras que são preciosas e faíscam muitos brilhos. E os homens. As mulheres e os homens, dúbios mas únicos. Temos ocasos arrebatadores, a revolver o nosso interior de sentimentos. E as doces albas, o renascer da eterna esperança. A noite, o dia, a lua, o sol, E o encadeamento sincronizado do claro e do escuro, Que estas nos oferecem. Temos isto tudo e mais o que não foi nomeado. Nesta diversidade de arregalar a vista, Mergulhados numa inesgotável admiração, A metafísica é tempo perdido. Tendo à mão a simplicidade das coisas como elas são, Não é sensato complicar-nos a vida.

VIOLENTAMENTE

Desejo que me beijes violentamente Porque eu não sei como chegar a ti E beijar-te violentamente. O que queria, Mas não arrisco. Não ia resistir a num movimento brusco de rejeição, E perder numa oportunidade, As poupanças de esperança acumuladas no meu depósito Do futuro. Quem vou amar depois de ti? Que nunca oficializámos, nem o faremos, Já que este desvario de paixão antecipada, Nunca passou dos limites da minha cabeça, Hoje ao almoço, Quando entre o panado de frango, Olhava para ti na mesa em frente E imaginava que te iria beijar violentamente, E tu perdida.

CLARO - ESCURO

Do movimento constante das coisas, o sol ganha proeminência sobre a lua, com uma pontualidade irrepreensível. Consequentemente e sendo um desafio dos dois, ela não concorda, e para que não se fique por aí, faz o mesmo proeminentemente.  A ndam há eternidades nisto, numa dialéctica pessoal. Dia e noite e dia.... O que é bom: haver quem continue a cumprir diligentemente a função que lhe cumpre. São um exemplo animador.

SINOS

Os sinos da minha aldeia, Uma ideia que tenho da minha aldeia, Badalam as horas certas E anunciam acontecimentos e factos. Não tendo religiões O que seria eu sem os sinos da minha aldeia. É um conforto serem sonantes, Justificam- me. Conto com eles, cumprindo-se como sinos que dão horas, acredito na existência de uma aldeia minha. Mas não.

ONTEM - FOLHETIM 6

O Avô gostava muito da sua prima e tanto a apreciava, que a tinha acolhido no seio da  família, oferecendo-lhe um tecto-casa seguro para se proteger das intempéries de uma vida madrasta que a levou a ser mãe solteira de um filho, o Augustinho, rapaz franzino, pouco animado. Ele era visita frequente do pátio. Vinha com a avó, não a dele que não tinha, a do António, mulher de um coração tão generoso que conseguia convencer-se a si mesma que o mundo era de uma tonalidade perto do cor-de-rosa inofensivo. Enquanto isto - estas visitas aos netos, dois -  o avô e a prima estariam não se sabe onde, cada um por si ou juntos, entretidos com alguma coisa ou não. Gostavam-se muito, ele era um filantropo, ela uma agradecida. O Augustinho como era de alguma forma fraco, dava-se ao aproveitamento e as crianças do prédio utilizavam-no impiedosamente. Instrumentalizavam-no se é correcto dizer-se – que ele se sentia isso muitas vezes é correctíssimo. Era o tempo, aquele, em que as

MISTÉRIO

Um olhar atento apanha a intenção, Nenhuma, Senão um esperguiçado, lânguido, longo, Olhar de vedeta de cinema. Mudo. Não o olhar. A pose enfática, ou suavizada, É igual. Pode não haver intenção, Uma declaração não declarada de intenção. De não ser nenhuma. E todavia, denuncia uma vontade qualquer, De vedeta de cinema, A olhar para o lado, De um olhar atento que a olha.
Arfar, ofegante arfar do peito. Em instantes dá-se a suspensão da respiração. A acontecer na fina superfície da pele epiderme, Que reveste o corpo, Com todas as histórias individuais que traz consigo. Anelando uma mão desconhecida, que quer conhecer, Dedos finos, compridos, sensíveis. Que a toquem, Com a maior das ternuras do desejo. Deseja dedos competentes e sinceros, Só aflorando, leve, levemente, A pele que agora já os espera com ardor. Na ideia de usufruir toda a qualidade de carícias: Decentes, indecentes e obscenas. Tudo isto se imagina, Num peito a arfar.

O MAR E UM HOMEM

A tranquilidade de o mar tranquilo que  também faz esses momentos de descanso de si mesmo, de não ser sempre revoltoso, em cascatas de ondas feias. Assim tranquiliza o homem que o olha. Espelham-se um no outro, e embora não se  sabendo, o mar pensa precisamente nisso: na  acalmia que lhe transmite o homem tranquilo  quando olha sem exigências para si.