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A mostrar mensagens de fevereiro, 2018

GOUTHA, A DESALENTADA

Uma cidade é um ser vivente? É um espaço habitado por seres, num fluxo constante de vida e morte. Isso dá-lhe carácter. São eles que lhe dão vida, cunham a sua identidade, esses seres específicos desse lugar maior que outros lugares, que a escolheram para viverem, e morrerem, nessa localização exacta e não outra.Uma cidade é um útero, e nunca se viu nenhum ser no tempo da gestação assassinar a sua própria mãe, porque o útero é o local mais agradável que se conhece para germinar a vida. Uma cidade é o cemitério, onde se depositam para o descanso final os entes queridos, e nunca se viu ninguém que ama devassar a última morada dos seus. Uma cidade é o eixo do mundo, esse pequeno mundo que a povoa, que se levanta todos os dias para ir às suas coisas do dia, que se deita para descansar das suas coisas do dia, na noite, repousando, repousante, a recuperar energia e tranquilidade. Tudo de importante e supérfluo acontece na cidade. Há cidades famosas, que todos querem visitar, há cida

CONTADOR DE PARÁBOLAS

O Senhor H abandonou a ideia da morte, por resolução pessoal, convenientemente interiorizada, e sem intervenção nem pedido externo, no dia que compreendeu que o seu pensamento andava a ser intoxicado por essa recorrência mas o culpado era outro, não o sabia ainda. Andava nisto há mais de vinte anos, sempre vestido de azedume, cor de breu petróleo, ou petróleo breu, não interessa a precedência, a mesma tonalidade da cor. Fervilhante com a sua ideia incrustada na cabeça, terá mesmo pensado em cometer suicídio, mas depois ficava mal visto e não queria. Tinha ideias fixas. Outras vezes, quando a crise agudizava, pensou em orquestrar um massacre colectivo, que seria ao mesmo tempo uma vingança apoteótica contra a frieza da sociedade, a desatenção profunda, cuja ligeireza leva as pessoas ao engano, e um espectáculo de pirotecnia: todos condenados à solidão, convencidos que andam acompanhados, só porque o vizinho do lado é estridente. O Senhor H era um pessimista, mas tin

DANDO NOMES AO REAL

Imaginando. O mar. Bonacheiro, aborrascado, ambíguo (palavras boas, e não se usam, contentes de serem ditas, ou escritas, lembradas da poeira que as cobre, fechadas no mofo dos léxicos, na qualidade de sinónimos figurantes, muito raramente a ganharem uma audição, soarem). O céu. Vítreo azul puro, plúmbeo, indiferente. No entanto sempre o mar, pouco a dizer. A terra. Amarelenta paupérrima, amarelenta vivaz. Os verdes aceitam-se todos, e os castanhos, mais sisudos, bem-aventurança serem vistos ainda que sisudos. Terra acobreada, todos os adjectivos e poucos, ou cinzenta, ausente. Uma flor, uma árvore, um animal , habitantes da superfície, sem cores atribuídas, ou engalanados de todas elas. Podem ser sombras, desenhos sem vida, do que já foram, ou o oposto, a jactância, aqui aceite, de se dizerem vivos transbordando vida. Os homens, pálidos ou enrubescidos. Os homens, tão difíceis de catalogar. Os homens, porque se desejam cataloga

Vilhelm Hammershøi: the poetry of silence

DO AMOR INCONDICINAL - 11 - PAIS E FILHOS

Caminham juntos há dias, tempo interminável que deixa de se sentir como tempo quando se dão passos determinados, concentrados no caminho, só nisso, o tanto que isso é. Quase não se consegue descrever a paisagem, nem se imaginava antes essa impossibilidade, tudo aparenta ser descritível e depois não se encontram palavras. É muito difícil descrever o branco. Soam insuficientes as palavras, as exactas, quantificar a sensação de frio que sentem os poucos animais e pouquíssimos homens que vagueiam por essa extensão do nada, enorme, a perder de vista, uma imcomparável imensidão, a que se espraia no local que atravessa o eixo imaginário que assinala o sul do mundo. A terra do branco puro. A paralisia do olhar que acontece quando se pisa pela primeira vez essa superfície, entende-se porque não é fácil descrever o nada. Mesmo no curto período do verão a temperatura é escandalosa, ditatorial. Chamar verão a um frio extremo é uma simpatia linguística, um cinismo. Este Sul é

DO AMOR INCONDICIONAL - 10 - DO CÃO

“Odeio a praia. Água, nem se fala. Alergia. A areia repugna-me, excremento geológico perverso a imiscuir-se no corpo dos outros, por tudo quanto é sítio. E não há forma de nos vermos livres dela: ao fim de uma semana ainda a trincamos, aparecem grânulos mínimos mas incomodativos nos interstícios mais recônditos, que foram lá parar propositadamente para nos irritar, causar incómodo, tirar o sossego, uma coceira infinda, a perna a imitar um braço de um boneco dos chinês irritantemente chinês, até ao durar da pilha, felizmente não duram muito. Areia e sol juntos, o pior convite – vou a contragosto - que me podem fazer para passar um dia fora de casa. Não é sequer um convite, ninguém me pergunta se quero, levam-me e eu vou. Bem se sabe que adoro a rua, espaços amplos, agora ver tudo em tons de amarelo, sem um apontamento de verde - a minha cor preferida - não haver nas proximidades um pequeno arbusto onde nos possamos alçar, e ainda queimarmos as nossas mesmas plantas- as dos pés