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RALÉ







Não há poética em dizer isto: todos os homens são fundamentais ao andamento do mundo, menos a ralé, que são pústulas das sociedades, dejectos das classes, se ainda há isso.

A ralé é a franja de gente periférica à existência humana, cada vez em maior número, que alimenta o extremismo, a ascenção com pés de lã dos totalitários.

Sejam de que género e feitio forem: do futebol de praia aos bailes de debutantes nos salões do poder, a ralé está de novo a preencher os lugares vazios, multiplicando-se muito.

As elites, alimentam as ralés, interessa-lhes, pois são os que estão disponíveis para abdicarem das ideologias, para não terem de pensar. São bem mandados a tudo o que fizer falta, por um simples mandar sem explicações. O seu reconhecimento é grupal, daí primitivo, por não se darem disponibilidade de se abrirem aos outros, diferentes. Recompensam-se no seu seio poluído, pelo número de feitos de malvadez praticados.

Foi assim há setenta e nove anos.

As elites usam-nos para obterem objectivos mais ou menos reconhecíveis, mas de tanto conviver com estes indivíduos, sempre a necessitar deles para os “trabalhinhos”, acabam por ficar como eles, mimetizam-nos. É quando se chega aí, quando as elites também já são ralé, que isto começa a ficar um local muito perigoso.

De repente e de um dia para o outro - que nunca é, porque os sinais estiveram sempre lá, a piscarem e óbvios, só que ou não os viram, ou fingiram que não os viram, ou tiveram a cobardia de deixar para alguém e resolução do problema e poderem assim continuar a sua gloriosa e profícua vida fútil – a sociedade está de novo minada.

Regressou o dia em que se oferece ao rebanho o grande discurso:  O conto feito a mitologia do momento, do futuro radiante e eterno, o emblema, a bandeira, o cântico, o hino, a raça, a pátria.

A elite-ralé manda a ralé-ralé destruir, seja o que for, onde for. E ela vai contente, ordenada e eficaz. Pelo caminho há quem tire fotografias, e ponha de imediato na rede, e os faça famosos, quando eles, se alguém olhar e ver, ficam todos mal nas fotografias: são feios.

Nos pequenos e grandes acontecimentos, ao lado de casa ou num sítio ermo algures, faz-se a um ritmo que aumenta todos os dias, a repetição de histórias tristes, reprises de mau gosto e sabor amargo, vistas e revistas, vividas, morridas, sofridas, esquecidas, em que alguns ingénuos julgaram não serem mais possíveis. Estão aí.

Gaseados ontem, quase a não conseguirem uma descendência, matam hoje numa prisão a campo aberto onde pessoas argumentam com pedras contra os argumentos de armas lançadas por drones infalíveis – só se pode ser convincente sendo letal, dizem especialistas.

Exterminam-se miseráveis que não têm pontos de fuga e sem culpa formada, a não ser de terem nascido do lado errado dos muros construídos depois. Tudo em nome da religião, ou desculpada por ela, ou cobardemente apoiada nessa mentira.

São, somos todos tão donos de um pedaço de terra esteja onde estiver, como outro que goste dela. Não é de ninguém, é de usufruto transitório e sendo partilhada, trabalhada a dois, floresce jardins muitos mais esplêndidos e carregados de flores exóticas.

A ralé não sabe o que é uma flor, por isso é bárbara e previsível. Mata, mas não é ela que sobrevive, é o morto.



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