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Mensagens

Não foi assim há tanto tempo

As crianças passavam os dias na rua até que o chamamento estridente das criadas para o jantar, se desenvencilhasse do bruá dos putos no pátio, e fosse ouvido, com pena da brincadeira terminar. Guelas, caricas com a cara de jogadores famosos, pião, bola claro! Apanhada, cabra cega... as peças do puzzle do dia a encadear os sonhos da noite. Tempos de mudança. Os rapazes tinham mais liberdades que as raparigas, mas algumas   começavam já a desnovelar uma   vida confinada aos quartos e salas bafientas por onde acirandavam as mães e outras antiguidades. Tempos de convívios incómodos, para elas que se aventuravam nos primeiros deslumbramentos fora do universo bafiento,   para eles cedência de espaço, galarós tímidos presumidos de à vontade. Os géneros acabaram por se fundir no grande pote da infância e quase todos recordam com nostalgia o tempo em que o tempo parou. O espaço do pátio que então parecia enorme e hoje não tem pretensões de grandeza, partilhava-se assim

Sapatos

Tenho o carro à porta de casa, porque  a garagem está atafulhada de caixas de sapatos.  Os meus “ Manolos ”, os meus “ Loubotins ”, os apreciados “ Stuart Wetzman ”, uma vida de grande esforço para os ter. Sim são como filhos que fiz nascer , que criei e alimentei com um carinho e um desvelo de filhos verdadeiros. Acariciei-os mais que ao próprio, o do sangue, que os homens de pequeninos e de boas famílias, não se alimentam com carícias, mas com distanciamento e razão. Quando forem adultos, não são piegas, moldaram a força do seu carácter, na ausência do afecto, estão preparados para nos tratar, a nós mulheres, como gostamos: com as deferências do gesto e a protecção material dos nossos pequenos caprichos. É assim que eu gosto deles, dos meus sapatos: arrumados, catalogados por filas de género e estação. Já não os uso todos, os dias do ano não são suficientes e a moda é mais rápida que o som, e se queremos estar na primeira fila, não devemos ter arrepe

Escrevo

Escrevo só para me convencer, que as palavras são a invenção fundamental do homem, mesmo com os silêncios e pausas que por vezes impõem. Escrevo porque as palavras lavram feridas profundas que não saram e sangram muito. Mas também porque são os pensos que estancam as hemorragias de medos desconhecidos. As palavras podem agora estar arredondadas em significações primitivas - retrocesso a mundos cavernosos – tempos de agora, que logo mudam. Fenómeno temporário. Não te assustes! Dá-me as tuas palavras. Gosto. Escrevo porque as palavras são a fotossíntese dos homens, suplemento mulitavitamínico sem genéricos de baixo custo. Escrevo porque não consigo deixar de deslumbrar-me a cada momento, pela beleza ofuscante da sensualidade da sua caligrafia , pousadas ao de leve,no lençol branco marfim onde repousam, vindas do longo caminho de um pensamento. Escrevo para te dizer olá, e iniciar a épica aventura de comunicar contigo, dizer-te o que sou, absorver o que és, disfrutarmos nest

O meu menino é Artista.

Sou mais para uma colcha bem feita ou um naperon, isso sim até aos olhos me chega a maré alta. Não é que tenha jeito, com estas mãos sapudas e desajeitadas, uma sempre a fazer o que a outra não quer, mas valorizo um trabalho bem arrematado. Coisas de mulheres.  Sou uma pessoa que se contenta com coisas simples: um sorriso do meu menino à sua Maria, faz-me sentir Mãe e pronto. É homem e casou, mas continuo a cuidar dele . Há dias em que a sua casa está uma desarrumação , nem sei por onde pegar. O Manel merceeiro diz que os artistas andam sempre em festa. Não sei onde vai buscar estes conhecimentos das vidas dos outros, mas como merceeiro, com uma correnteza de fregueses a entrar e sair da loja, apanha aqui e acaba por ser um jornal andante, pombo correio sem asas. Sem sair da loja, arredonda na conta das batatas por um bom desabafo das clientas, e assim ganha esses conhecimentos das coisas importantes das vidas que por lá passam. Restos de vinhos nos copos e beatas dos ciga

O Circo está na rua

São oito horas da manhã, são sete horas da tarde. A energia, o sorriso genuíno extravasam a jarra do universo, num pequeno planeta perdido algures na via láctea. Há um Google Maps da via láctea? Estamos em lugar de privilégio na sala de sonhos com maior rotatividade de espectadores por minuto, e a actuação só dura ténues segundos. Massas, fitas, lançadores de fogo, monociclos, representações na borrasca e na bonança, num teatro-circo em céu aberto. Um cão rafeiro, cão estátua tensamente atento aos donos, o mais acérrimo dos críticos, assiste no bordo do passeio na primeiríssima fila. A sincronicidade da actuação, das saudações e da recolha de propina, são absolutas. Relógio suíço. Fim de mais uma actuação. Tempo para pôr a moeda no saco velho, mimo ao animal, treino que antecede a próxima entrada em cena. A revisão mental da sessão seguinte, repetida mil vezes num dia. A glória, depois de uma execução irrepreensível. Um rapaz e uma rapar