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Um jantar à luz das velas

Jantar num monte alentejano decorado com memorabilia e pormenores de gosto desconcertante – posto que da aristocracia não se pode alegar mau gosto nem adjectivação inapropriada - antigo coto de caça de uma família com pergaminhos,   do norte, que agora aluga o espaço em package com direito a histórias de passados gloriosos em voucher de fim de semana. Manuseando talheres antigos e outros que para lá caminham, veio a tema, entre um lombo de porco e uma “ crumble ” de maçã, a excelência da empregada ucraniana.   Não fora o facto merecedor da mais sonora admiração, o de ela falar bom português com acento alentejano, ainda conseguiu o feito de levar os dois filhos ao colo até a licenciatura num estrangeiro que não este. A “ Mãe ” – não a da ucraniana mas a da anfitriã - acometeu-se de uma arrelia crónica que a levou à morte,   por ter de partilhar a mesa de família com autóctones de Massamá e outras proveniências. Foi uma enxaqueca que a consumiu, a da partilha e por

A raposa e o mineiro

A escuridão é quase absoluta num túnel feito pela mão do homem, escavado nas entranhas da terra, terra adentro, na direção das profundezas. Não se veria praticamente nada não fosse um coto alimentado por uma lamparina de azeite presa no capacete, a debitar uma luz mortiça. Uma multidão de homens escuros, sem rosto, sem um som de voz a sobressair no ruído insustentável das picaretas, formigas que escavam e transportam incessantemente toneladas de carvão: o ouro que alimenta as feéricas e estonteantes máquinas que rolam sobre carris, e que vão ligar de ponta a ponta o mais grandioso Império do Mundo, de Ocidente a Oriente, de S.Petersburgo a Vladivostoque. Esta gente alimenta eternamente os seus czares, e dobra as costas massacradas em tormentos, no bater das botas de todos os cossacos. Vlad, nunca vê a luz do dia, consome-se nas trevas de uma gruta, mineiro à força, escravo do Grande Senhor da Rússia. Cá fora – não há cá fora nessa terra maior do mundo - todos são igualme

Não foi assim há tanto tempo

As crianças passavam os dias na rua até que o chamamento estridente das criadas para o jantar, se desenvencilhasse do bruá dos putos no pátio, e fosse ouvido, com pena da brincadeira terminar. Guelas, caricas com a cara de jogadores famosos, pião, bola claro! Apanhada, cabra cega... as peças do puzzle do dia a encadear os sonhos da noite. Tempos de mudança. Os rapazes tinham mais liberdades que as raparigas, mas algumas   começavam já a desnovelar uma   vida confinada aos quartos e salas bafientas por onde acirandavam as mães e outras antiguidades. Tempos de convívios incómodos, para elas que se aventuravam nos primeiros deslumbramentos fora do universo bafiento,   para eles cedência de espaço, galarós tímidos presumidos de à vontade. Os géneros acabaram por se fundir no grande pote da infância e quase todos recordam com nostalgia o tempo em que o tempo parou. O espaço do pátio que então parecia enorme e hoje não tem pretensões de grandeza, partilhava-se assim

Sapatos

Tenho o carro à porta de casa, porque  a garagem está atafulhada de caixas de sapatos.  Os meus “ Manolos ”, os meus “ Loubotins ”, os apreciados “ Stuart Wetzman ”, uma vida de grande esforço para os ter. Sim são como filhos que fiz nascer , que criei e alimentei com um carinho e um desvelo de filhos verdadeiros. Acariciei-os mais que ao próprio, o do sangue, que os homens de pequeninos e de boas famílias, não se alimentam com carícias, mas com distanciamento e razão. Quando forem adultos, não são piegas, moldaram a força do seu carácter, na ausência do afecto, estão preparados para nos tratar, a nós mulheres, como gostamos: com as deferências do gesto e a protecção material dos nossos pequenos caprichos. É assim que eu gosto deles, dos meus sapatos: arrumados, catalogados por filas de género e estação. Já não os uso todos, os dias do ano não são suficientes e a moda é mais rápida que o som, e se queremos estar na primeira fila, não devemos ter arrepe