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Mensagens

Episódios de verão

O jovem empregado tinha a boca bem ventilada. Não sabemos se foi propositado, faltam-lhe os caninos. Os fluxos de ar, permitem uma corrente de ar apaziguadora de calores, o que facilita a interacção com as camones , se bem que um pouco ciciada. É um rapaz com estilo (rapaz, considerando-se à cautela um intervalo que vai aproximadamente dos quinze aos vinte cinco, dependendo de testes hormonais. Antes disso seria miúdo, depois será um jovem adulto). Cabelo rapado, com uma crista galinácea que alguns jovens insistem, brinco na orelha, e as imprescindíveis tatuagens tribais nos bíceps trabalhados em momentos de lusco-fusco no ginásio da povoação. A t-shirt é banal – considerando-se por banal um regurgitado de cores florescentes a engalanar uma frase de provocação sexual. Para rematar esta imagem cuidada, umas sapatilhas – ténis - azul turqueza com atacadores amarelos e um tacão generoso ( para conferir ao conjunto um aspecto mais encorpado, que os meridionais ainda andam cur

Comentador de assuntos vãos

Àquela hora, todos os indícios prometem uma boa manhã: o papagaio do vizinho já se debate com questões linguísticas, as gaivotas estão histéricas, o sol ainda mal abriu os olhos e os seus raios varrem horizontalmente os objectos e os seres, vestindo-os de contraluz. Vai se aperaltar um grande dia de verão! O vento recolhido no lar, deixa o ar abafado e quente , Jacinto acordou nesta algazarra sensorial, mas permaneceu, tomando-se com vagar senhor dos automatismos vitais - agora sob o seu controlo - protegido pelos lençóis de fina cambraia. Aguarda pelo noticiário das seis na Antena 1, espera que a voz da rádio o ponha ao corrente do pulsar, ou estertor, do mundo. Uma canção de combate, das antigas e boas, aviva resíduos dos tempos em que ainda existiam ideologias e causas, tem um arrepio momentâneo de nostalgia pé de galinha e enterra a cabeça grisalha, na almofada ortopédica. Espera-o um longo dia de trabalho, como comentador de assuntos vãos, opinador do i

A bandeira degolada

Dizemo-nos com símbolos: as palavras são, a iconografia é, pessoas que simbolizam conceitos vivos para o colectivo, expressões de identificação e entendimento, plasmam a identidade da tribo. Todos este s símbolos são os veículos e meios de expressão pelos quais, munidos de uma liberdade total, comunicamos com o mundo. São os códigos que dispomos para nos entendermos, desentendermos, coexistir, de preferência harmoniosamente, em sociedade. Não nos exprimimos  sem liberdade de expressão, o que não quer dizer que não possamos – que podemos  mas a decência não devia deixar - veícular as nossas ideias usando uma qualquer estapafúrdia ou violentadora forma de dizer, rebaixando o outro com  golpes de violência verbal, gestual ou mesmo física. Se usarmos esses subterfúgios de jogador de  Poker  somos menos livres porque aprisionamos os incautos nas armadilhas do nosso suposto poder. E não há pior poder que negar a palavra do outro. Os homens necessitam de símbolo

Leprosos

A cidade bule, impiedosa como todas as urbes, não por maldade própria, mas pela inerência normal da imensidão de pessoas difusas, cada um nos seus afazeres do dia. Numa intersecção de vias rodoviárias, ruas movimentadas, pontes de circulação pedonal, viadutos por cima e por baixo, existe uma aldeia de casas de cartão e materiais efémeros. Não se sabe se esta aldeia tem um nome, deveria ter. A toponímia legaliza a geografia. Nessa aldeia de papel, vivem pessoas, como em todas as aldeias. Habitada por seres primitivos – palavra difícil de entender e de mal entendidos – no entanto humanos. Os cidadãos atarefados da urbe, fingem que não os veem: envergonham o seu olhar. Outros e muitos, desprezam a insistência de um copo preso numa mão estendida. Os seres deste aglomerado em cartolina, quase primevos, ainda assim humanos, vieram de terras desconhecidas, mal afamadas pelo desconhecimento. Não se imagina como conseguiram chegar - nem se perde tempo c

Cartógrafo do desconhecido

Despertou cedo, foi passear. Vestiu roupa simples e cómoda, calçou umas sapatilhas afeiçoadas aos pés, fechou a porta delicadamente para não incomodar os objectos que ainda dormiam. Alisou-se uma passadeira vermelha. Pleno de si, O pé direito fez o primeiro gesto, desafiou o parceiro do lado. Estava um tempo agradável, nem frio nem calor, ideal para grandes caminhadas. Ciciava uma aragem apenas detectável, os primeiros passos, comedidos e lentos, estimulados pela perspectiva de um excelente passeio, cedo se ficaram afoitos. Assim foi andando. No fim da passadeira, apresentaram-se novas possibilidades, primeiras escolhas, inúmeras ramificações oferecidas, como árvore desenhada no chão, e ele confiante, aceitou. Seguiu sem definição de rumos, deambulou inchado de inocência. A companhia acolhedora do sol lampejante e os sons espontâneos da natureza, aligeiraram o seu pensamento. Leve, deu passos mais longos, ganhou distâncias, afastou-s