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Mensagens

Milagre improvável

Numa ausência total de luz, em trevas muito densas e feias, Faiscou um relampejo. Eu, Selma, mártir entre os homens,  oferenda dos deuses e para vergonha de ambos, Lancei das alturas celestiais onde me encontro, Um míssil de flores luminosas, com um feitiço. Clareou-se o céu de todos os conflitos, numa chuva intensa de pétalas luminescentes. Irradiou luz e espalhou na terra sensações de bem-estar. Atónitos, desconcertados, sem antídoto contra os meus poderes de feiticeira boa, os homens desavindos depuseram as balas e as pedras. Alguns conseguiram chorar e não se sentiram mal por isso. Nessa bebedeira de emoções intensas, desataram aos abraços e aos beijos, escolheram pares aleatórios e dançaram - mesmo os coxos. As crianças fizeram as travessuras que lhes compete, sem necessidade de conceitos geo-políticos na sua cumplicidade de crianças: São ingénuas, não se enfrascam de rancores. Eu, Selma, a eterna virgem, a neonata e logo a neo-pós

Morri à porta de um refúgio de paz sem saber porquê

O meu nome é Selma: a amiga da Paz. Foi esse o meu nome, nos vinte dias que vivi na terra dos homens. Agora, que voltei a casa de deus, não sei como me chamo. Regressei ontem e ninguém me deu explicações. O que fui lá fazer se foi por tão pouco tempo? Morri, ainda nem vivida, à porta de um refúgio de paz, com o nome que me deram por engano. Vivi vinte dias sem ter tido tempo para aprender a dizer Amor – de todas, a palavra que eu mais gostaria de desfrutar . Vivi para aparecer – morta - numa fotografia, notícia efémera nas televisões do mundo dos homens. Amanhã, estou definitivamente esquecida. Hoje, no universo dos deuses, continuo esquecida. Um pedido de desculpas, seria suficiente. Gostaria de poder voltar uma vez mais a essa terra estranha, e chamar-me Shalom (paz), e ficar por lá algum tempo a brincar com as outras crianças. Gostaria, mas os deuses ainda são mais casmurros que os humanos, e as birras de meninos mimados que fazem c

No meu prédio estamos quase na falência, mas não arredamos pé

O meu vizinho navega em ideias e é um homem expedito. Tudo começou quando um dia ele veio bater, porta a porta, disponibilizando as suas economias, caso tivéssemos alguma aflição: “logo pagaríamos, vizinhos são para as ocasiões, afinal estamos todos no mesmo prédio, prontos a estender uma mão amiga”. Alguns, aflitos para poderem continuar a usufruir das casas dos segredos e das passarelas vermelhas,   e dos quatrocentos e vinte e cinco canais - todos bons - alinharam logo. O vizinho de cima, que andava com problemas para pagar a mensalidade de um sistema de saúde simpático a que tinha aderido - por não ter médico de família - bateu-lhe à porta a pedir conselho, e ele, prontamente, e por ser homem de muitos contactos, encaminhou-o para uns amigos que lhe iam tratar convenientemente da saúde. O do rés do chão direito, há trinta e três anos que não ia de férias. Tinha um sonho por realizar. “Não há problema, tenho uma pequena sociedade barata, em parceria com rapazes das o

Episódios de verão

O jovem empregado tinha a boca bem ventilada. Não sabemos se foi propositado, faltam-lhe os caninos. Os fluxos de ar, permitem uma corrente de ar apaziguadora de calores, o que facilita a interacção com as camones , se bem que um pouco ciciada. É um rapaz com estilo (rapaz, considerando-se à cautela um intervalo que vai aproximadamente dos quinze aos vinte cinco, dependendo de testes hormonais. Antes disso seria miúdo, depois será um jovem adulto). Cabelo rapado, com uma crista galinácea que alguns jovens insistem, brinco na orelha, e as imprescindíveis tatuagens tribais nos bíceps trabalhados em momentos de lusco-fusco no ginásio da povoação. A t-shirt é banal – considerando-se por banal um regurgitado de cores florescentes a engalanar uma frase de provocação sexual. Para rematar esta imagem cuidada, umas sapatilhas – ténis - azul turqueza com atacadores amarelos e um tacão generoso ( para conferir ao conjunto um aspecto mais encorpado, que os meridionais ainda andam cur

Comentador de assuntos vãos

Àquela hora, todos os indícios prometem uma boa manhã: o papagaio do vizinho já se debate com questões linguísticas, as gaivotas estão histéricas, o sol ainda mal abriu os olhos e os seus raios varrem horizontalmente os objectos e os seres, vestindo-os de contraluz. Vai se aperaltar um grande dia de verão! O vento recolhido no lar, deixa o ar abafado e quente , Jacinto acordou nesta algazarra sensorial, mas permaneceu, tomando-se com vagar senhor dos automatismos vitais - agora sob o seu controlo - protegido pelos lençóis de fina cambraia. Aguarda pelo noticiário das seis na Antena 1, espera que a voz da rádio o ponha ao corrente do pulsar, ou estertor, do mundo. Uma canção de combate, das antigas e boas, aviva resíduos dos tempos em que ainda existiam ideologias e causas, tem um arrepio momentâneo de nostalgia pé de galinha e enterra a cabeça grisalha, na almofada ortopédica. Espera-o um longo dia de trabalho, como comentador de assuntos vãos, opinador do i

A bandeira degolada

Dizemo-nos com símbolos: as palavras são, a iconografia é, pessoas que simbolizam conceitos vivos para o colectivo, expressões de identificação e entendimento, plasmam a identidade da tribo. Todos este s símbolos são os veículos e meios de expressão pelos quais, munidos de uma liberdade total, comunicamos com o mundo. São os códigos que dispomos para nos entendermos, desentendermos, coexistir, de preferência harmoniosamente, em sociedade. Não nos exprimimos  sem liberdade de expressão, o que não quer dizer que não possamos – que podemos  mas a decência não devia deixar - veícular as nossas ideias usando uma qualquer estapafúrdia ou violentadora forma de dizer, rebaixando o outro com  golpes de violência verbal, gestual ou mesmo física. Se usarmos esses subterfúgios de jogador de  Poker  somos menos livres porque aprisionamos os incautos nas armadilhas do nosso suposto poder. E não há pior poder que negar a palavra do outro. Os homens necessitam de símbolo

Leprosos

A cidade bule, impiedosa como todas as urbes, não por maldade própria, mas pela inerência normal da imensidão de pessoas difusas, cada um nos seus afazeres do dia. Numa intersecção de vias rodoviárias, ruas movimentadas, pontes de circulação pedonal, viadutos por cima e por baixo, existe uma aldeia de casas de cartão e materiais efémeros. Não se sabe se esta aldeia tem um nome, deveria ter. A toponímia legaliza a geografia. Nessa aldeia de papel, vivem pessoas, como em todas as aldeias. Habitada por seres primitivos – palavra difícil de entender e de mal entendidos – no entanto humanos. Os cidadãos atarefados da urbe, fingem que não os veem: envergonham o seu olhar. Outros e muitos, desprezam a insistência de um copo preso numa mão estendida. Os seres deste aglomerado em cartolina, quase primevos, ainda assim humanos, vieram de terras desconhecidas, mal afamadas pelo desconhecimento. Não se imagina como conseguiram chegar - nem se perde tempo c