Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

TEMOS A CAPITAL DA CASTANHA

O clima é extremado, não gosta de meias tintas: rigorosamente frio, ou intransigentemente quente. As poucas pessoas e bestas que habitam as paisagens – bucólicas as últimas na perspectiva do transeunte em passagem – são igualmente assim. De tanto convívio com a natureza, sorveram do ambiente o seu feitio complexo, ensimesmado. Não deixam a porta aberta para que qualquer um entre, mas fica encostada quando saem de casa. Não são seres que amem as solidões, mas o confinamento e a escassez de almas, encerra-os, convite quase forçado a sentarem-se no escano em frente ao fogo. Sorriem de portas adentro, em família, gente séria nos rostos que se apresentam à luz do dia. Em passados antigos repetindo-se nos recentíssimos, foram poucos os que não se refugiaram no estrangeiro ou nas grandes cidades do litoral. Fica quem não se despega da terra: impossibilidades pessoais ou físicas. Fica quem tem os magnetismos alterados, os que apresentam raízes nos pés, que se metem a crescer p

DICIONÁRIO PRÁTICO DO ELEITOR

Estimado e paciente leitor, Apresenta-se perante vós um manual resumido e sintetizado, que pretende ser de utilidade para o Eleitor confundido. O objectivo deste dicionário é ajudar a compreender alguns termos “técnicos” que os políticos utilizam e que nem sempre – dada a descontextualização permanente com que eles os usam para nos baralhar – o cidadão comum entende. A escrita deste Dicionário é fácil, esclarecedora e completamente imparcial. Se sentir o impulso de lexicógrafo a irromper das entranhas, são bem-vindos comentários e até novas “entradas” (desde que respeituosas e esclarecedoras). Usufrua, passe aos amigos e aos que odeia e, sobretudo, se tiver nas suas relações de intimidade, amigos políticos no activo, faça o favor de lhes dar a ler este dicionário. Bem haja! E vote Bem! ELEITOR: Cidadão esperançado que gostava de ser útil mas não sabe ao que vai. CARTÃO DE ELEITOR: O segundo cartão que se perde logo a seguir ao boletim de vacinas. VOT

A DEMOCRACIA É UM LONGO E PENOSO CAMINHO

Visitei a Eslováquia em 1998. A república Checa tinha há pouco tempo “corrido” com este pequeno ainda não país, porque era a parte pobre que os checos não queriam para si. Viviam os seus primeiros anos no “admirável mundo novo” da democracia, ainda a medo, macambúzios, acossados pelos fantasmas do passado. A imagem mais forte que guardo desses dias - quase uma semana - é do cinzento plúmbeo das paisagens dessa tentativa de país. A escuridão era feita das sombras, das casas, das árvores, das pessoas, todo esse mundo a esgravatar a medos procurando luz e uma esperança nova. Angustiado pela asfixia de um tempo morto e pesado, escapei-me para passar um dia em Viena. Fui de autocarro, acho que era o único meridional presente e mesmo assim, quando chegados à fronteira austríaca, a polícia pôs toda a gente cá fora, revistou o autocarro, apalpou os eslovacos, ficou-lhes com os documentos para busca minuciosa de informação, e a mim, depois de olharem para o meu passaporte que lhes m

O Homem que escreve histórias de Amor

O local não podia ser mais arejado, é irrelevante se faz bom tempo, que agrinalda o espaço, ou se chove: uma cortina de pingos de chuva pode ser plúmbea de bonita. Neste caso em que o tempo climatérico não conta, avistam-se cumes de mastros com movimentos ritmados num parque de estacionamento para barcos de recreio. Em segundo plano corre um rio que nesse acontecimento terminal de ser rio penetra na salinidade do mar, une-se com o seu infinito, realizado está. É um segundo plano, porque entre os mastros e essa qualquer coisa que desconfiamos seja mar, armazéns desfeiam o que podia ser poesia. António foi escolhido por esse lugar para viver e escrever cinco romances de amor. Cinco versões da mesma história, com nomes distintos, mas femininos, e todavia sobre o amor, o tema de toda a atenção. Na vida o que sobra de outros assuntos são banalidades. Este homem reside num endereço sem caixa de correio, vizinho de outros escritores de palavras que não escrevem sobre o amor, mas

A ALDEIA DE CAVALEIRO

«Estás bem apresentada, a boca toda a ensinar os dentes!» «Casaste bem ontem à noite, não?» «O ti Quim também parece que dormiu pouco mas não deve ter sido da raladeira!» «Esqueci-me dos comprimidos.» «E o que vai ser?» «Se me apuseres em cheirinho de licor beirão,c’o café ficava bem!» Uma aldeia que se chama Cavaleiro, abaixo para quem desce ao Sul, de Almograve: uma rotunda com uma rua principal a desembocar numa praia vaidosa, como todas as do Litoral alentejano. Hoje é dia de inauguração, os da Junta todos em nervoseira: os vendedores de camionetas ambulantes de peixe e de verduras e de batas com cores garridas, tem um novo espaço para feirarem, devidamente assinalado com uma tabuleta minúscula, mas garbosa, que ainda por cima não assinala bem. Correções de sinalética autárquica a serem levadas a Assembleia. No ajuntamento de poucas casas de Cavaleiro,a caminho do Cabo Sardão, está o bar da Adélia, o único “ spot ” com conexão ao ciber -espaço, onde se misturam as conve

PROCISSÃO

As festas da nossa aldeia, estejam elas habitadas por fantasmas que há sua maneira também comemoram, ou recebam um milhão de festejadores, são as festas da nossa aldeia, as melhores, o nosso orgulho. O marco geodésico que sinaliza a comunidade exactamente geográfica onde nascemos, ou onde queríamos haver nascido e da qual nos fazemos adoptar como filhos da terra - demos as voltas que dermos por esse mundo fora – é a guardiã extremosa da nossa essência, que se chama folego: um sopro-chama, que nos soprou pela primeira vez, enviando-nos para as rotas a cumprir na vida. Todos os anos, com hora marcada abraçam-se de costados os emigrados, rapa-se o fundo às conversas para pôr em dia, faz-se a procissão da santa, come-se e bebe-se, e a música pirosa e brejeira, ouve-se em volume estúpido, saída aos gorgorejos dos auto-falantes pendurados nos candeeiros de rua. Pela manhã quando o tempo ainda está propício a louvarmos o Senhor, sai a procissão finda a missa solene celebrada

O OLHO DA TIA FLORINDA

A minha tia tinha um olho de vidro e à noite afogava-o, maneira de dizer,num copo de água em cima do psiché . A água não era gaseificada, mas constituíam-se pequeníssimas e inúmeras bolhas à sua volta. A modos que um olho numa   flute   de champanhe. Para quem está habituado a dentaduras a boiar, esta foi uma grande ideia da minha tia. Sendo uma mulher com o sentido prático da vida, e como não se está a ver ninguém dormir com um fechado e outro aberto,    não tendo outros inquilinos, arrendou o aquário ao vítreo. Foi o meu avô que lhe ofereceu o olho, mais para ganhar as graças da sogra e ficar oficializado o namoro com a minha avó, sua irmã, do que por atenções à zarolha. Foi no entanto um gesto de simpatia. Um dia já sem memória que a bicheza das campas    as comeram ao mesmo tempo que as carnes, chegou a casa delas com um embrulho de papel pardo na mão e disse alheadamente:  « toma, a vê se encaixa». A minha tia desembrulhou-o na expectativa das tes