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Mensagens

A DOENÇA

Conheço-o mas não sei o nome. São os nomes que me falham, os rostos não. Os nomes têm letras e são essas que me entontecem. São muitas, não as junto bem. Quando me abordam, os rostos, não sei o que dizer. A cabeça para, fico a observar, a ver no que vai dar. Abordam-me com simpatia, eu queria ser educado, mas não sai nada. Por vezes, desbloqueia-se um encadeado de letras, saem com uma velocidade inaudita, e digo-o, desanuvia-me. Mas o rosto que fiz o favor de lhe dar um nome, não gosta.  Contrapõe com perguntas inconvenientes. “Quem é ele?”, “Como se chama?”, “Graus de parentesco?” Nesses momentos fico cansado, enervo-me, perco o controlo das letras, e para não ser inconveniente, olho, só olho, de olhos bem abertos, sem nada para dizer. Ainda ontem, deve ter sido ontem, estava a tratar de uns assuntos importantes com a minha mãe, na cozinha, coisas da morte dela e do funeral que não gostou porque teve pouca gente, estavam também uns amigos do Gás que entraram pelas esc

DARWIN E A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES

Quando uma sociedade não reage - não os cidadãos em geral, que esses só se queixam, ou dizem mal, ou tentam arranjar estratagemas criativos de imitação dos grandes corruptos, os verdadeiros modelos do mundo moderno –, nas suas estruturas inflexíveis, simplificando e deitando um simples olhar humano para os outros, em vez de seguir os guiões dos protocolos, das convenções, das ordens de serviço, da linha burocrática do requerimento, dos carimbos, dos tempos intermináveis que a burocracia inventou para fazer esmorecer as pessoas;quando chegamos a esse ponto em que a miséria, a fome, os maus-tratos, a morte, são laçarotes descoloridos que enfeitam as notícias das televisões,sempre as mesmas histórias, todos os dias iguais, só com nomes de actores diferentes; quando chegamos aqui, assim, não parece que tenha havido uma evolução na espécie. Claro que existem estradas magníficas que intersectam toda a geografia; um número incontável de carros confortáveis e rápidos que levam as pess

O DIVINO ESCORRE-ME PELAS PAREDES

Deus pinga-me do tecto e escorre pelas paredes, todos os dias às sete horas da manhã e à mesma hora da tarde. Tem uma pontualidade que me deixa perplexo: como Deus, podia dar nota da sua presença a qualquer momento, sem se anunciar, mas não, é com o tempo marcado. Nestas infiltrações no meu apartamento, jorram orações em ladainha, cânticos tristes espicham, sermões soturnos traçam riscos negros descendentes, todo um oceano que desagua na minha casa. Para sermos rigorosos fazemos a correcção de que não é Deus que escorre pelas minhas paredes brancas. É um acólito seu. Esse padre anónimo (presume-se que seja padre) é a voz da missa transmitida na radiotelefonia. Não se dando a ver a não ser ouvido pelo fenómeno do som - neste caso um som que pinga por paredes e tectos – podia ser mesmo Deus em pessoa que é assim que os milagres acontecem: estranhos e com um sentido de oportunidade muito próprio. Eu, pelo menos acredito na possibilidade de um milagre assim: palavras sonor

DIAS FELIZES, TODOS.

Lamento mas este Natal tenho pouco para vos dar, pouco mais que o desejo de um bom dia, voto que faço no apogeu e no desfecho dos dias dos anos que passam, enquanto por cá andarilhamos. Não tendo nenhum voto em especial e específico só para o Natal. Não vos auguro mais só por ser Dezembro. As religiões, não me meto com elas - evito equívocos - por isso não comemoro as efemérides de nenhuma. Tenho como garantido que não vos esquecerei no dia 26  mais do que vos vou esquecendo habitual e desastradamente ao longo do ano, deveria era lembrar-me mais, sempre! Nem vos saúdo mais efusivamente durante esta semana, porque de repente me lembrei que existem. Não me parece educado arrumar contas de bom e sincero amigo, enviando por correio um cartão cheio de purpurinas cintilantes, ou escrevendo à pressa uma mensagem esfarrapada, rebuscada, presumida, acompanhada por uma imagem piegas, repetida por todos os que andam distraídos, nos faces ou nos depósitos dos sms e emails que entopem

UM BONITO CONTO DE NATAL

“Mãe, fomos à terra do Pai Natal, voltamos para a Consoada”. Estamos na época do ano em que as pessoas pedem suplemento de mimos, as crianças muitos brinquedos inúteis, alguns velhos carinhos, os sem-abrigo não pedem nada. E está instituído assim, que todos devemos estar mais sensíveis e disponíveis neste período. Se um idoso nos mendigar atenções em Maio, que é um mês sem ocorrências histriónicas assinaladas no calendário, fazemos de conta que não é connosco, voltaremos a ele em Dezembro, se ainda for vivo e puder falar. Nesta altura em que se comemora o reencontro, a partilha, a reunião da grande família humana cristã, em que até o a-sentimental mais empedernido olha de relance para o pobre, se apieda tenuemente e lhe atira uma moeda de cêntimos, os homens de boa vontade – escassos - não têm mãos para despachar tanta solidariedade concentrada em meia dúzia de dias. Só com ajuda, e divina. Que se saiba, só Deus Nosso Senhor e o Pai Natal conseguem prover a todos e

UM PASSEIO A VILA VIÇOSA

Fomos de passeio até Vale Viçoso ou Vila Viçosa, toponímia alterada por D. Afonso III, há tanto tempo que se arquivou na gaveta dos dados inúteis. Tomámos essa decisão porque faz bem sair, ir a qualquer lado, vagabundar sem reserva feita,nestes momentos de medos que atormentam as almas, em que aumenta a temperatura dos desnortes, febrículas insidiosas que debilitam corpos e afrouxam cabeças num adormecimento indolente, atarantados todos na escolha de direcção nas encruzilhadas dos caminhos, sempre difíceis os caminhos. Cada um reage a seu modo: uns valem-se de amnésias propositadas (aos esquecidos tudo se desculpa), vagueiam fora de si, como sempre fizeram - por aqui e por ali - seguindo as correntes do momento; outros põem-se à procura dos valores (não os do dinheiro, mas os do espírito), esquecidos nas gavetas, perdidos nos labirintos interiores das suas casas, vagueiam dentro de si não encontrando nada; há os que colocam perguntas, esperançados que o gorgorejo das ve

TEMOS A CAPITAL DA CASTANHA

O clima é extremado, não gosta de meias tintas: rigorosamente frio, ou intransigentemente quente. As poucas pessoas e bestas que habitam as paisagens – bucólicas as últimas na perspectiva do transeunte em passagem – são igualmente assim. De tanto convívio com a natureza, sorveram do ambiente o seu feitio complexo, ensimesmado. Não deixam a porta aberta para que qualquer um entre, mas fica encostada quando saem de casa. Não são seres que amem as solidões, mas o confinamento e a escassez de almas, encerra-os, convite quase forçado a sentarem-se no escano em frente ao fogo. Sorriem de portas adentro, em família, gente séria nos rostos que se apresentam à luz do dia. Em passados antigos repetindo-se nos recentíssimos, foram poucos os que não se refugiaram no estrangeiro ou nas grandes cidades do litoral. Fica quem não se despega da terra: impossibilidades pessoais ou físicas. Fica quem tem os magnetismos alterados, os que apresentam raízes nos pés, que se metem a crescer p