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Mensagens

UMA BIBLIOTECA EM SINTRA

- Bom dia, tenho alguns livros para oferecer à biblioteca. Estão num saco, no carro. - Nós não aceitamos livros. - Olhe que são bons livros. Praticamente todos são, eu só leio dos bons. - Já temos muitos. - Mesmo assim. Não aceitam livros numa biblioteca? - Não precisamos de mais livros. - Mas se calhar estes que vos quero oferecer, ainda não têm. É literatura juvenil. E alguns para adultos também. - Não temos quem os cuide. Vá à Junta, mas eles lá não devem aceitar. Tente. - Só por curiosidade: vem cá alguém requisitar livros para levar para casa, ou lê-los aqui? - Não temos ninguém, estou todo o dia sozinha. - e não a entristece, ver este sítio vazio? - já estou habituada. Passei vinte anos no atendimento, na Junta, desgastou-me muito. Aqui faço a minha renda e não tenho uma única reclamação. Gosto. - Um bom ano para si, minha senhora. - Para o senhor também, e que todos os seus desejos se realizem.

DESANIMADO

Está um dia desanimado. Não, sou eu e desculpo-me assim. Os dias não vestem estados de alma. Hoje falta-me uma certa pessoa, pelo menos o seu sorriso muito particular. Está um dia como está, pela ausência desse sorriso. Acabou de entrar na habitação definitiva da memória. Agora, só recordá-lo. O sorriso.

FINADOS

Hoje é dia de finados, dos que se lembram, dos que se esqueceram. Recordar alguém é bom, e trazer flores frescas. Visitar a sua campa sorrindo ou triste, ir um quase nada que seja. Hoje é o dia de todos os santos, porque depois de viverem uma vida na terra, os homens ganham santidade. E já que a vida é complexa e agitada, que eles tenham o seu dia, e que seja feriado, para não haver desculpa de não serem lembrados. Hoje é o dia que um dia será o nosso. Até lá vamos batendo de porta em porta a pedir guloseimas, pode ser que a fingir de crianças nunca nos finemos.

QUANDO OS LIVROS DESAPARECERAM

Esqueceu-se a imagem de uma folha de papel com palavras alinhavando frases. Sonhos acordados, poesia. Os homens deixaram de ler. Há mais de uma geração, duas gerações. Era cansativo, consumia-se tempo sem garantias de um bom desfecho. A vida não se toma de paixões com o que atrase a sua permanente urgência de apanhar o futuro, e os dois têm assuntos íntimos para resolver, adiados. Andam sempre na eminência não conseguida de apanharem os seus calcanhares e resolverem-se, e nunca se apanham. Há muitos anos que se esgotaram recursos da terra essenciais à vida dos homens, que na sua previdência natural, assistiram a isso como espectadores desinteressados. As florestas consumiram-se. Foi assim que deixou de haver papel, e livros. Nenhum dos dois factos – a falta deles - alteraram a vida das pessoas. Árvores e livros. A imagem aroveitou e substituiu a palavra escrita pensando-se que seria mais simples. A imagem diz mais coisas em modo concentrado, mas o que acon

NARCISO

No mito moderno Narciso não definha a olhar insanamente apaixonado para a imagem que se reflecte no espelho. Ele infla, são os outros que mirram, por não serem Narciso, ou porque podendo sê-lo seguram esse impulso em favor da sua decência pessoal.  

DOS PANAMA PAPER

CARTA A PEDRO SANTOS GUERREIRO I - Semanário EXPRESSO Assunto: Panama Papers – 17 Agosto 2016 Caro Pedro Santos Guerreiro, Desculpe-me a devassa de lhe entrar assim, de rompante, sem um doutor, um professor doutor, com uma ligeireza a parecer deselegância no tracto. Os títulos atrapalham-me (eu sei, é um problema meu), prefiro a descomplicação dos nomes, facilita a comunicação, reduz distâncias, anula hierarquias e altares. Venho à fala consigo para pedir a gentileza de me fazer o ponto da situação relativamente àqueles papelotes que tanto anunciou em tempos recentes. Uns papeluchos escaldantes, prometendo confissões escandalosas (o que me pelo por um bom escândalo!) Julguei perceber que era uma enorme papelaria, a ocupar muito espaço, resmas e resmas. Os seus persistentes anúncios, puseram-me curioso, e aguardei a roer as unhas até que fosse feita a revelação prometida (e quem promete, se é cumpridor, da palavra, paga). O tempo passou, entrámos na silly

IMPRESSÕES SOBRE OS MESES

Lá fora é Setembro, a luz já não é a mesma. No Verão partículas de calor turvam o ar, saturam o ambiente. A luz em toda a sua plenitude encadeia. Anula o distanciamento, o perto e o longe. Os horizontes tremeluzem mais, longínquos como sempre, e ganha a persuasão do imediato que está à mão. É o tempo do agora. A luz do Verão incide difusamente sobre os objectos, coloca-os à distância de um braço estendido que tateia os seus contornos esguios, por essas razões é uma época sensual dada à aproximação dos corpos. Com a mudança do mês, na despedida da estação os cenários ganham lucidez, desaparecem as poeiras, puxam-se brilhos, redefine-se o aspecto das coisas, ou sendo mais simples, volta-se a habitar o quotidiano, anuncia-se a entrada no tempo sério. Lá fora é Setembro e as crianças ainda jogam futebol na rua e gritam gastando energias impensáveis. Andam nisto há meses e não se cansam, felizmente. Quando começar a chuva e o vento, deixam de jogar na rua e não podem