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PÁTRIA

O meu lugar é uma pequena aldeia por onde passa um pequeno rio sempre a correr. O rio da minha aldeia sujou-se. Não tem metafísica. Admito perante todos que não tenho aldeia. Apesar do rio da minha não-aldeia estar poluído, nauseabundo e ser pardacento, eu não abdico da metafísica. E gosto da ideia de ter uma aldeia, com um rio que pode ser riacho desde que desague no mar, dá-lhe grandeza. Essa é a minha condição fundamental, ter sítio, o resto são pormenores sem importância, como existir ou não uma aldeia com um rio ou não a atravessá-la. E a metafísica.

AS SOMBRAS

É a época em que os homens se perderam da sua sombra. Rareia a luz que projecta a silhueta preta dos corpos na calçada branca. Orfãos de sombra os homens defrontam o mundo sozinhos e assustam-se. Algures alguém da condição humana, de querer fazer uma escolha, má, capturou a luz, fez a pior das escolhas. Não foi ingénua essa decisão. Pouco se pode fazer agora, a luta afigura-se desgastante e vã. No epicentro da indecisão, nas opções naturais e outras inconcebíveis mas que são opções, entre o estar quieto e dar sinais de vida, e enquanto ainda assim se luta porque é cobardia desistir no que se acredita, a poesia ajuda. A poesia não é ingénua, nem as artes, nem os engenhos do homem. É criação e liberdade, e mesmo que o corpo esteja preso, a boca cosida e muda, as mãos algemadas e sem movimento, a arte não se deixa capturar, foge por entre as mãos dos carrascos que asfixiam o vazio e desesperam e urram, brutos, porque por muitos corpos que capturem nunca conseguem

PASSAROLAR

Era ainda noite parda. Na insónia apanhei de ouvido, um, ou muitos pássaros. Não sei se pequenos, se grandes, onde estavam, perto presumo, porque se ouviam bem. Não havendo árvores por ali, eram pássaros pousadores nos beirais, dos livres e voadores. Vinham de uma noitada, ou acabados de despertar na antecâmara do novo dia. Não sei. Pararam temporariamente nos arredores da cabeceira da minha cama, separados pelo lá fora, eles, o cá dentro, eu. Enleado nos lençóis. Livres e voadores, os pássaros. Presumido de livre mas preso à cama, eu. Ali, aquela hora, pousados, criaram um lapso de tempo para fazer conversa. Pareceu bastante tempo, mas à noite nunca se sabe porque está escuro. Atento, curioso por entender o que estavam a dizer, concentrei-me nas modulações dos seus pios, e identifiquei diferenças. Julguei até perceber que havia uns mais piadores e outros que só ouviam. Pode ter sido um devaneio, julgo que não. Quase garanto neste dia que ainda não o era que h

MACAQUEIO

Num dia assim, sem pretensões, com as brisas suspensas e uma luz despejada, simples, o que logo me apetece é fingir que a vida é bela. Possuído por essa sensação quente, macaqueio por aí, muito solto, saltitante. Só puxa a gargalhar em grande estilo, um gargalhar de quem não tem contas a prestar. Quando acontecem esses dias, catrapisco o olho às moças que passeiam pelas ruas - à espera elas de serem catrapiscadas - e mando as contrariedades darem uma volta.  Dou folga aos dois: aos contratempos e a mim.

OPERÁRIO DAS FRASES FEITAS

Tenho a desgastante tarefa de escrever frases inúteis. Serão lidas, com sorte, uma única vez. Depois lixo. Escrevo as frases mais efémeras que existem. O propósito é mesmo esse, escrever frases sem emoção para serem lidas uma só vez. Não são feitas para se ficar a pensar. Não temos tempo. Alguém tem que fazer este trabalho, outros, muitos, se puderem arrastam a minha honradez na sargeta para ocuparem esta cadeira. É alimentar o rastilho de um equívoco desinteressante e inventam todo um enredo, com personagens e boas mentiras. Os tempos não estão para facilidades. É mil vezes preferível ter algum nos bolsos e ser precário, e aceitar enxovalhos do que os ter cheios de zeros.  Já vi passarem muitos rostos sem expressão por este local. Esqueci-lhes os nomes, se os tiveram. Tem que se ganhar o sustento, este é um trabalho como outro qualquer. Nem melhor, nem pior, uma forma de ir perdendo a vida a conta-gotas com algum dinheiro para comprar cenouras. Nunca tenho horas para sa

DO DIZER

Se adequadamente eu soubesse desenhar as letras que formam as palavras que exprimem as coisas tão belas e todas, escrevia mensagens ternas e de amor. Perdi esse roteiro, não sei fazer, apaguei a memória dos seus contornos e as mãos estão autónomas de mim. Nem dizer consigo. Olho para ti, faço o esforço de tentar, mas estou prisioneiro de uma boca muda. Apesar da resistência dos meus olhos, a quererem falar em sua substituição, tu não me entendes. Nem eu do dizer-te o que queria tanto, a ti. Que esqueci

SEMPRE PEQUENO

Mãe por que tenho que crescer se um dia vou ser hipócrita e cínico e corro seriamente o risco de vir a morrer sem ter tempo de branquear essas nódoas que me mancham, soçobrando sem glórias, a uma vida absurdamente fugaz? Posso ficar a brincar na rua distraído de tudo, mesmo do sol que está quente e agradável e é fundamental, mas eu não ligo nem sei da sua importância? Não há nem nunca vai haver assunto mais sério e imprescindível que jogar à macaca ou ao eixo. E se não crescer, não morro.