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ONTEM - FOLHETIM 6

O Avô gostava muito da sua prima e tanto a apreciava, que a tinha acolhido no seio da  família, oferecendo-lhe um tecto-casa seguro para se proteger das intempéries de uma vida madrasta que a levou a ser mãe solteira de um filho, o Augustinho, rapaz franzino, pouco animado. Ele era visita frequente do pátio. Vinha com a avó, não a dele que não tinha, a do António, mulher de um coração tão generoso que conseguia convencer-se a si mesma que o mundo era de uma tonalidade perto do cor-de-rosa inofensivo. Enquanto isto - estas visitas aos netos, dois -  o avô e a prima estariam não se sabe onde, cada um por si ou juntos, entretidos com alguma coisa ou não. Gostavam-se muito, ele era um filantropo, ela uma agradecida. O Augustinho como era de alguma forma fraco, dava-se ao aproveitamento e as crianças do prédio utilizavam-no impiedosamente. Instrumentalizavam-no se é correcto dizer-se – que ele se sentia isso muitas vezes é correctíssimo. Era o tempo, aquele, em que as

MISTÉRIO

Um olhar atento apanha a intenção, Nenhuma, Senão um esperguiçado, lânguido, longo, Olhar de vedeta de cinema. Mudo. Não o olhar. A pose enfática, ou suavizada, É igual. Pode não haver intenção, Uma declaração não declarada de intenção. De não ser nenhuma. E todavia, denuncia uma vontade qualquer, De vedeta de cinema, A olhar para o lado, De um olhar atento que a olha.
Arfar, ofegante arfar do peito. Em instantes dá-se a suspensão da respiração. A acontecer na fina superfície da pele epiderme, Que reveste o corpo, Com todas as histórias individuais que traz consigo. Anelando uma mão desconhecida, que quer conhecer, Dedos finos, compridos, sensíveis. Que a toquem, Com a maior das ternuras do desejo. Deseja dedos competentes e sinceros, Só aflorando, leve, levemente, A pele que agora já os espera com ardor. Na ideia de usufruir toda a qualidade de carícias: Decentes, indecentes e obscenas. Tudo isto se imagina, Num peito a arfar.

O MAR E UM HOMEM

A tranquilidade de o mar tranquilo que  também faz esses momentos de descanso de si mesmo, de não ser sempre revoltoso, em cascatas de ondas feias. Assim tranquiliza o homem que o olha. Espelham-se um no outro, e embora não se  sabendo, o mar pensa precisamente nisso: na  acalmia que lhe transmite o homem tranquilo  quando olha sem exigências para si.
ALDRABILHAS, é a palavra mais suave que conheço para designar com carinho os biltres. A minha vénia de gratidão a alguns, tantos,   políticos do meu país. Pedrogão Grande, ou pequena, fica onde? Foi já ali.

ONTEM - FOLHETIM 5

A escola não tinha campainhas, era por intuição, mais ou menos, que se acertava o tempo certo do recreio. Mais ou menos três da tarde. Correm, quase num andar correr contido - porque são meninas - para o pátio, correm elegantemente. Ainda não estão todas e entra em cena o Stevens, um modo de dizer. Ele não está presente, a sua voz.  Os argumentos todos para as arrumar à primeira com o primeiro argumento. Como disse alguém, que tudo disse o que havia de interessante e bem pensado para se dizer de uma vez por todas sobre todos os assuntos do mundo, as alunas dóceis que naquele tempo tinham que ser dóceis, começaram por estranhar comportadamente a música. Segredaram coisinhas suas, inseguranças - em situações assim falam-se coisas - e por fim entranharam, tomaram gosto. Depois desse primeiro momento, tenso, indeciso, os radialistas animados, deram o seu melhor: a playlist era pôr todos os discos a tocar, uns após os outros. Salvador, locutor, só fazia separad

UM NOME

Estou a perder um nome. Tropeçou, Distraído, No poço da memória. Abstraíu-se, Caiu de borco, Fundíssimo, nos fundos de um poço imenso. Há cordas fortes e compridas Para o resgatar? Atenção, No silêncio pesado, ouvem-se ecos, débeis. No eco, reside a esperança. Como era o seu nome? Talvez se possa salvar. Seria uma catástrofe, Uma perda irreparável. Não se pode perder um nome.