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Mensagens

A mostrar mensagens de 2016

UMA BIBLIOTECA EM SINTRA

- Bom dia, tenho alguns livros para oferecer à biblioteca. Estão num saco, no carro. - Nós não aceitamos livros. - Olhe que são bons livros. Praticamente todos são, eu só leio dos bons. - Já temos muitos. - Mesmo assim. Não aceitam livros numa biblioteca? - Não precisamos de mais livros. - Mas se calhar estes que vos quero oferecer, ainda não têm. É literatura juvenil. E alguns para adultos também. - Não temos quem os cuide. Vá à Junta, mas eles lá não devem aceitar. Tente. - Só por curiosidade: vem cá alguém requisitar livros para levar para casa, ou lê-los aqui? - Não temos ninguém, estou todo o dia sozinha. - e não a entristece, ver este sítio vazio? - já estou habituada. Passei vinte anos no atendimento, na Junta, desgastou-me muito. Aqui faço a minha renda e não tenho uma única reclamação. Gosto. - Um bom ano para si, minha senhora. - Para o senhor também, e que todos os seus desejos se realizem.

DESANIMADO

Está um dia desanimado. Não, sou eu e desculpo-me assim. Os dias não vestem estados de alma. Hoje falta-me uma certa pessoa, pelo menos o seu sorriso muito particular. Está um dia como está, pela ausência desse sorriso. Acabou de entrar na habitação definitiva da memória. Agora, só recordá-lo. O sorriso.

FINADOS

Hoje é dia de finados, dos que se lembram, dos que se esqueceram. Recordar alguém é bom, e trazer flores frescas. Visitar a sua campa sorrindo ou triste, ir um quase nada que seja. Hoje é o dia de todos os santos, porque depois de viverem uma vida na terra, os homens ganham santidade. E já que a vida é complexa e agitada, que eles tenham o seu dia, e que seja feriado, para não haver desculpa de não serem lembrados. Hoje é o dia que um dia será o nosso. Até lá vamos batendo de porta em porta a pedir guloseimas, pode ser que a fingir de crianças nunca nos finemos.

QUANDO OS LIVROS DESAPARECERAM

Esqueceu-se a imagem de uma folha de papel com palavras alinhavando frases. Sonhos acordados, poesia. Os homens deixaram de ler. Há mais de uma geração, duas gerações. Era cansativo, consumia-se tempo sem garantias de um bom desfecho. A vida não se toma de paixões com o que atrase a sua permanente urgência de apanhar o futuro, e os dois têm assuntos íntimos para resolver, adiados. Andam sempre na eminência não conseguida de apanharem os seus calcanhares e resolverem-se, e nunca se apanham. Há muitos anos que se esgotaram recursos da terra essenciais à vida dos homens, que na sua previdência natural, assistiram a isso como espectadores desinteressados. As florestas consumiram-se. Foi assim que deixou de haver papel, e livros. Nenhum dos dois factos – a falta deles - alteraram a vida das pessoas. Árvores e livros. A imagem aroveitou e substituiu a palavra escrita pensando-se que seria mais simples. A imagem diz mais coisas em modo concentrado, mas o que acon

NARCISO

No mito moderno Narciso não definha a olhar insanamente apaixonado para a imagem que se reflecte no espelho. Ele infla, são os outros que mirram, por não serem Narciso, ou porque podendo sê-lo seguram esse impulso em favor da sua decência pessoal.  

DOS PANAMA PAPER

CARTA A PEDRO SANTOS GUERREIRO I - Semanário EXPRESSO Assunto: Panama Papers – 17 Agosto 2016 Caro Pedro Santos Guerreiro, Desculpe-me a devassa de lhe entrar assim, de rompante, sem um doutor, um professor doutor, com uma ligeireza a parecer deselegância no tracto. Os títulos atrapalham-me (eu sei, é um problema meu), prefiro a descomplicação dos nomes, facilita a comunicação, reduz distâncias, anula hierarquias e altares. Venho à fala consigo para pedir a gentileza de me fazer o ponto da situação relativamente àqueles papelotes que tanto anunciou em tempos recentes. Uns papeluchos escaldantes, prometendo confissões escandalosas (o que me pelo por um bom escândalo!) Julguei perceber que era uma enorme papelaria, a ocupar muito espaço, resmas e resmas. Os seus persistentes anúncios, puseram-me curioso, e aguardei a roer as unhas até que fosse feita a revelação prometida (e quem promete, se é cumpridor, da palavra, paga). O tempo passou, entrámos na silly

IMPRESSÕES SOBRE OS MESES

Lá fora é Setembro, a luz já não é a mesma. No Verão partículas de calor turvam o ar, saturam o ambiente. A luz em toda a sua plenitude encadeia. Anula o distanciamento, o perto e o longe. Os horizontes tremeluzem mais, longínquos como sempre, e ganha a persuasão do imediato que está à mão. É o tempo do agora. A luz do Verão incide difusamente sobre os objectos, coloca-os à distância de um braço estendido que tateia os seus contornos esguios, por essas razões é uma época sensual dada à aproximação dos corpos. Com a mudança do mês, na despedida da estação os cenários ganham lucidez, desaparecem as poeiras, puxam-se brilhos, redefine-se o aspecto das coisas, ou sendo mais simples, volta-se a habitar o quotidiano, anuncia-se a entrada no tempo sério. Lá fora é Setembro e as crianças ainda jogam futebol na rua e gritam gastando energias impensáveis. Andam nisto há meses e não se cansam, felizmente. Quando começar a chuva e o vento, deixam de jogar na rua e não podem

DA INUTILIDADE DOS MUROS

A parede de um muro tem dois lados, não há volta a dar. Não há muros de uma só face, todos têm o lado de dentro e o de fora. Fazem falta as paredes? Sim, para proteger das intempéries. As paredes são fortes para não serem derrubadas, são altas para que não se possam saltar. Fortes e altas é bom se protegerem das intempéries. Não sendo nestas situações, não se vê nenhum interesse na construção de muros com outros propósitos. São inúteis e como tal aberrações. Paredes no meio de nada ou a cortar caminhos, impedindo o acesso a um dos lados, ou aos dois, são ideias redundantes. Podem permanecer de pé interminavelmente, à custa de um poder qualquer exterior, mas continuam redundantes e é bom que saibam que se sabe disso. Podem-se rodear rios, montes, vales, ilhas, praticamente tudo, com muros de grandes paredes, pintadas ou não. Pode-se mesmo confinar o mundo a viver emparedado. Mas o pensamento não, e mesmo que se conseguisse, bastaria escapar um para tornar os

A TERRA DOS MANUEIS E AS UNIVERSIDADES DE VERÃO, UMA NOVELA APAIXONADA

Episódio 1 “Caro Manuel é um gosto recebê-lo. Em nome de todos dou-lhe as boas-vindas, esta é a sua casa.” “Caro Manuel o prazer é meu.” “O bom senso trouxe-o para junto de nós, verá que a nossa verdade, que é inabalável, é a que melhor lhe convém.” “Sem dúvida Manuel anseio conhecer-vos melhor, estar ao nível das vossas expectativas, contribuir com o meu empenho para o nosso sucesso.” “Em nome dos nossos correligionários agradeço Manuel, isto é uma irmandade e estamos aqui para as vitórias e as derrotas, que praticamente não as temos.” “É uma lisonja pertencer a este colectivo, que nos orgulha a todos.” “Na sessão desta noite faremos a sua apresentação, nada de muito formal.” “Entretanto pode passar pela secretaria, o Manuel secretário completa a sua inscrição. O seu contributo, Manuel, é fundamental. Só sobrevivemos das quotizações de alguns beneméritos de grande generosidade e dos votos nas urnas.” “Darei o meu melhor, sinto-me honrado por pertencer ao
Os meus "Panama papers" não fogem, tenho-os presos a uma  pedra.

ESCREVER

É um encadeado de acontecimentos involuntários, não há controlo, a continuação e o rumo da história não está na nossa mão, somos só executantes – mais ou menos artísticos – de um guião escrito pelos pensamentos que brotam de nós com vida própria, independentes dos nossos desejos, dos estados de espírito ou se as condições atmosféricas estão propicias naquele dia, naquele momento, ao acto de escrever.
HOJE NASCEU ASSIM, A  PINGAR UM RASTO DE LUMINOSIDADES FORTES
o Sol hoje nasceu assim, de parto natural e sem complicações
Estou a pôr a minha memória na nuvem...

UM CERTO LITORAL ALENTEJANO, NOVELA FOTOGRÁFICA

Mesmo que seja de passagem é deselegante não deambular pelas ruas da vila. São Teotónio diz que tem a maior comunidade emigrante romena do país: essa mania de se inventar a pretexto de uma minudência alguma coisa que seja a maior e melhor, e ninguém tenha igual ou parecido, é coisa nossa.                                               Como era o que havia mais à mão, São Teotónio, lançou esse boato cá para fora, e pegou. Nas três vezes que lá fui no espaço de uma semana, não me cruzei com nenhum(romeno), mas também é verdade que não os distingo dos portugueses, havendo uma alta probabilidade de que misturados, não seja fácil identificá-los.  Quanto à "barreira" do idioma e com quem se falou, assegura-se que a comunicação foi feita num genuíno alentejanar da palavra, e sobre o sotaque o mesmo. Pode dar-se o caso que eles há tanto tempo emigrados falem correctamente esta  nuance do p